São Paulo, quinta-feira, 23 de setembro de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

Árvores voadoras

Estava na capa da Folha do último domingo: "26% das árvores correm risco de cair nos Jardins". Já sei, já sei, vivo implicando com as pérolas perpetradas nos títulos jornalísticos. A culpa não é minha, juro; apenas cumpro minha função, que, no caso dos comentários sobre os títulos, vai ao encontro do interesse geral e, particularmente, dos vestibulandos (não são poucas as questões baseadas nas "mágicas" dos títulos jornalísticos).
Mas voltemos às árvores. Que São Paulo está longe de ser uma cidade habitável não é novidade. Os problemas surgem de onde menos se espera que surjam, mas árvores voadoras... Já sei: é a natureza promovendo a tão desejada igualdade social (nos Jardins -área "nobre" de São Paulo- está boa parte do PIB nacional).
Pois bem, brincadeiras à parte, o que se deduz do título é justamente isto: 1 em cada 4 árvores (da cidade de São Paulo, do país, do mundo, sei lá) corre o risco de cair (depois de voar, é claro) nos Jardins. Parece evidente que o que se queria dizer era algo semelhante a isto: "26% das árvores dos Jardins correm risco de cair".
Não lhe parece sintomática (e coerente) a troca de "dos Jardins" por "nos Jardins", caro leitor? Em "dos" ("de" + "os"), encontra-se a preposição "de", que, no caso, estabelece relação de posse entre "árvores" e "Jardins" (as árvores são dos Jardins); em "nos" ("em" + "os"), encontra-se a preposição "em", que estabelece relação de lugar entre o verbo "cair" e a referida região paulistana.
Bem, quando eu disse "coerente", quis dizer que o uso de "nos" condiz com a estrutura empregada no título (e com o sentido efetivamente transmitido). Como se vê, trata-se de um belíssimo exemplo de frase mal-bem-feita.
O fato é que os títulos jornalísticos vão de mal a pior. O que não falta para os examinadores (e para os estudiosos -e aqui se incluem os vestibulandos e candidatos a vagas no serviço público) é material para estudo, reflexão, riso, choro, espanto... Quer outro exemplo? Vamos lá (da capa da mesma edição da Folha): "Coração mata mais a mulher do que câncer de mama".
Já descobriu qual é o problema desse título? O câncer de mama mata ou é morto pelo males do coração? Embora estruturalmente ambígua, a frase acaba sendo compreendida pelo que alguns vestibulares chamam de "conhecimento de mundo".
Releia o título, por favor. Alguns dirão que a simetria entre a presença do artigo antes de "mulher" e a ausência dele antes de "coração" e de "câncer" pode salvar a frase da ambigüidade. Será? Isso talvez pudesse ser levado a sério, se nos títulos jornalísticos o artigo definido não fosse tratado como cão sem dono.
Bem, o sentido desejado pelo redator parece claro: "As mulheres morrem mais do coração do que de câncer de mama". No título original, o problema está na posição em que se enxerga a elipse do termo "mata" (depois de "que" ou depois de "mama").
Alguém poderia aproveitar a ocasião para perguntar se não seria obrigatório o emprego de um "do" depois de "mulher" ("Coração mata mais a mulher do que câncer de mama"). Seria possível, sim, mas não obrigatório. Nas estruturas comparativas, ocorre o emprego de "que" e de "do que", indiferentemente. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
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