São Paulo, quinta-feira, 23 de setembro de 2010

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PASQUALE CIPRO NETO

"Dilma nega que sabia de atos...'


O uso efetivo da língua mostra que escritores e falantes ora usam o subjuntivo, ora o indicativo


ESTAVA NA "CAPA" de um site, como manchete principal da página: "Dilma nega que sabia de atos do filho de Erenice". Na Folha (no domingo passado), havia este título: "Dilma afirma que não sabia de lobby na Casa Civil...". Qual título é o mais adequado, caro leitor?
Aos fatos (linguísticos, é claro). Se o leitor se detiver atentamente nos dois títulos, verá que no do site foi empregada a sequência "Dilma nega que sabia" e no da Folha "Dilma afirma que não sabia". Os mais afoitos talvez digam que tanto faz, que os dois títulos se equivalem, mas a coisa talvez não seja bem assim.
Para pôr um pouco de lenha na fogueira, lembro que no título do site ("Dilma nega que sabia de atos...") o verbo ("sabia") da oração subordinada está no modo indicativo. O que ocorreria se o indicativo fosse trocado pelo subjuntivo? Se essa troca fosse feita, teríamos "Dilma nega que soubesse de atos do filho de Erenice", certo? E então? Tanto faz?
Não tanto faz, não. Embora muita gente julgue obrigatório o emprego do subjuntivo quando o verbo da oração principal é "supor", "negar", "acreditar", "imaginar", "desconfiar", "suspeitar", "crer" etc., o uso efetivo da língua mostra que escritores (clássicos e modernos) e falantes ora usam o subjuntivo ("Ele acredita que o ministro seja culpado"), ora usam o indicativo ("Ele acredita que o ministro é culpado").
A opção por uma ou outra forma não é neutra, não. Normalmente, quando se opta pelo modo subjuntivo, põe-se no plano da dúvida, incerteza etc. o processo expresso pelo verbo. Comparem-se estes dois trechos (ambos de Alexandre Herculano, citados por Evanildo Bechara numa de suas obras): "...me vinham à mente suspeitas de que ela fosse um anjo transviado do céu"; "Suspeitava-se que era a alma da velha Brites que andava ali penada".
No primeiro exemplo, empregou-se o substantivo "suspeitas" (cognato do verbo "suspeitar"), cujo complemento é a oração "de que ela fosse um anjo...". O verbo dessa oração ("fosse") está no subjuntivo, o que reforça a suspeita ou desconfiança.
Na oração principal do segundo trecho, empregou-se o verbo "suspeitar" ("suspeitava-se"), mas agora o verbo da oração subordinada está no indicativo ("era"), o que parece reforçar não a suspeita, mas a certeza de que era a alma da velha Brites que andava ali penada.
Pois bem. Voltemos aos títulos citados no começo da coluna, especificamente ao do site ("Dilma nega que sabia..."). Quando se compara o resultado do emprego de "sabia" com o de "soubesse" ("Dilma nega que soubesse"), ou seja, quando se compara o emprego do modo indicativo com o do subjuntivo, nota-se algo "estranho": com o verbo no subjuntivo, concede-se a Dilma o chamado benefício da dúvida; com o verbo no modo indicativo, parece que se dá como certo ou bastante provável o fato negado por Dilma.
Quando se lê a frase, pode-se ficar com a impressão de que se diz que Dilma nega, mas sabia, claro que sabia. Inevitável a lembrança da famosa frase atribuída a Galilei (há quem a atribua ao escritor Giuseppe Baretti, que a teria criado para reconstruir o depoimento, na Inquisição, do cientista italiano): "E pur si muove" (que também se pode grafar "Eppur si muove" e que, numa tradução livre, significa algo como "Mas que se move se move").
Bem, não podemos esquecer que se trata de título jornalístico e, como já afirmei aqui diversas vezes, os títulos não são escritos em português, mas em titulês. O que importa é fazer que caibam. O "resto" fica em segundo plano. Será que essa praga um dia acaba? Tomara! É isso.

inculta@uol.com.br


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