São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DANUZA LEÃO

Uma gripe abençoada

Como era bom, quando se era criança, e se pegava uma gripe. E com uma febrinha tipo 37,5C, melhor ainda.
Em primeiro lugar, escola nem pensar; a família inteira se mobilizava não só para cuidar da "doente" como para paparicá-la e fazer todas as vontades. Algumas coisas eram proibidas: andar descalça pela casa, tomar água gelada ou usar uma camisa sem mangas. Era preciso estar sempre agasalhada, de preferência usando meia de lã, e se alimentar bem.
Por alimentação, leia-se: vários chazinhos por dia, acompanhados de uma torradinha, e no jantar, canja. Aliás, canja ou um pedacinho de galinha com purê de batatas, também podia. E quem está de cama fica, automaticamente, proibido de comer chocolate, batata frita e camarão.
É bem verdade que já não se fazem gripes como antigamente; quando eu era criança, na hora de dormir -cedo, quem tem gripe não pode dormir tarde-, havia uma sessão Vick Vaporub, e da lembrança do cheiro da pomada eu me lembro até hoje.
Era assim: primeiro havia o banho, de banheira. Depois, um pouco de Vick no peito e nas costas, um pijaminha de flanela, e o direito a comer na cama, na bandeja. A comida era dada na boca; na boca e, dependendo da idade, fazendo aviãozinho. Quem comesse tudo ganharia um presente no dia seguinte -bobagens, tipo o bolo predileto ou poder ver a caixa de jóias da mãe; na cama, claro.
Não eram nada, as jóias: um colarzinho de pérolas, dois ou três brochinhos de ouro, um relógio. Mas para quem tem sete, oito anos, a caixa correspondia à caverna de Ali Babá. Se no dia seguinte a febre não tivesse cedido, o médico vinha em casa; um médico simpático, paternal, mas capaz de tudo: de receitar uma injeção a óleo, por exemplo, daquelas que na hora em que o farmacêutico enfiava a agulha, se sentia o gosto na boca. Acho que era Eucaliptine, o nome.
Mas tinha mais: se houvesse tosse e bronquite, havia uma pasta chamada Antiflogestine, que se esquentava no banho-maria e que, na hora de dormir, era espalhada nas costas e no peito com uma faca. Essa era uma grande cena: "Ai, está queimando". A mãe passava um pouquinho na parte interna do braço, para testar a temperatura. Depois, uma camada de algodão e, em cima, uma atadura; a finalização era com dois ou três alfinetes de fralda. Ah, e ainda tinha um lenço no pescoço embebido em álcool.
Isso feito, cobertor e o privilégio de poder ler um pouquinho na cama, por uns 15 minutos. E bom mesmo era quando o pai chegava, à noite, com um embrulhinho com duas peras, duas maçãs, um cachinho de uvas, frutas que só apareciam em caso de doença, e o gibi.
Aí é que era bom: vinha minha mãe, me cobria com o cobertor até as orelhas, sentava na beira da cama e ficava um pouquinho, esperando o sono vir. Ele vinha logo, e ela saía na ponta dos pés, para não fazer barulho. Mais tarde voltava, punha o termômetro, e se via você suada, trocava seu pijama por um limpinho, sequinho. De manhã bem cedo punha as costas da mão na testa e dizia: "A febre foi embora". Para as mães, termômetros são perfeitamente inúteis.
Aí começava a convalescença, e a família inteira vinha, um de cada vez, trazendo um bolo ou uns biscoitos -"depois de uma gripe, é preciso se alimentar bem". Hoje, quando à noite toma aquele comprimido sem o qual não consegue dormir, e mesmo assim acorda às 4h da manhã, lembra de como era bom quando alguém entrava no quarto no meio da noite para ver se ela estava dormindo bem.
De preferência a mãe.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br


Texto Anterior: Professor corrige seu trabalho copiado
Próximo Texto: Há 50 anos: Sarre vai votar autonomia hoje
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.