São Paulo, quinta-feira, 23 de outubro de 2008

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PASQUALE CIPRO NETO

"Manifesto contra a nudez de Pedro Cardoso"


Pela enésima vez, caro leitor, lembro que as palavras devem ser dispostas nas frases com critério, com nexo

O GRANDE AUGUSTO DE CAMPOS dedica seu belíssimo livro "Balanço da Bossa e Outras Bossas" (de 1974) ao avô, Américo de Campos, "que me ensinou a gostar de poesia e a passar a vida inteira lutando por causa perdida".
Muitas vezes, sinto-me exatamente como Augusto. Quando vejo, por exemplo, certos títulos jornalísticos, acho que perco o meu latim (é bom saber que a expressão "gastar/ perder o seu latim" significa "trabalhar ou esforçar-se inutilmente").
Veja este título, posto na primeira página de um site, na semana passada: "Selton Mello responde ao manifesto contra a nudez de Pedro Cardoso". Eu estava fora da pátria amada, acompanhando a distância o que se sucedia por aqui. Não sabia que Cardoso se manifestara contra a nudez gratuita no cinema e no teatro.
Minha primeira reação foi supor que Cardoso ficara nu e que isso causara escândalos, revoltas, manifestos etc., e que, solidário, Selton Mello saíra em defesa de Cardoso.
Resolvi deixar o título de lado e ler a notícia toda. Nada de Cardoso nu, nada de manifesto contra a nudez dele, nada de apoio de Selton a Cardoso. O problema estava no (horroroso) título que eu lera, cujas peças estavam fora de lugar. O que se queria informar exigia que as palavras fossem dispostas nesta ordem: "Selton Mello responde ao manifesto de Pedro Cardoso contra a nudez".
Pela enésima vez, caro leitor, lembro que as palavras devem ser dispostas nas frases com critério, com nexo. Muitas vezes, a ordem dos fatores altera -e muito!- o produto. A parte dos estudos lingüísticos que se ocupa das relações entre as palavras e as orações é a regência.
Basta que duas palavras se relacionem para que se estabeleça um mecanismo de regência. Em "mulher bonita", por exemplo, o termo regente é "mulher"; o regido é "bonita". E por quê? Porque nesse par o substantivo (que não por acaso se chama substantivo -é a substância) é feminino, o que exige que o adjetivo ("bonita") assuma a forma feminina, em sintonia com "mulher".
Pois no título relativo à nudez de Cardoso, digo, ao manifesto de Cardoso contra a nudez gratuita no teatro e no cinema, a expressão "de Pedro Cardoso" é regida pelo substantivo "manifesto" e não pelo também substantivo "nudez". O nome "manifesto" rege ainda a expressão "contra a nudez". É fundamental que a ordem dos termos seja tal que impeça interpretação diferente da que se pretende, diferente daquela que espelha com veracidade os fatos.
Mas a coisa não parou no embate entre Mello e Cardoso. Veja esta outra pérola, perpetrada por um jornal (em letras graúdas): "Mãe de Eloá diz que perdoa Lindemberg durante velório". O perdão se encerra quando acaba o velório? E depois? Ou será que a mãe daria o perdão durante o velório? Mas Lindemberg estava preso, isto é, não poderia ir ao velório.
Há um mês, a pérola da vez foi esta: "Democratas e republicanos atribuem impasse em plano de socorro a McCain". Que significa isso? Que há um impasse num plano que visa a socorrer o pobre McCain? É o que parece. A expressão "a McCain" não é regida pelo substantivo "socorro", mas pela forma verbal "atribuem". A ordem que melhor traduziria o sentido pretendido é esta: "Democratas e republicanos atribuem a McCain impasse em plano de socorro".
Mais uma vez, pergunto: é difícil? Não creio. Basta ler, reler, ler -e com muita atenção. Do contrário... É isso.

inculta@uol.com.br



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