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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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SP 450

Ex-professor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, jurista relembra suas oito décadas de história em São Paulo

A vida junto às Arcadas

ALESSANDRO SILVA
DA REPORTAGEM LOCAL

O menino Miguel Reale desembarcou em São Paulo quando a cidade ainda respirava os novos e polêmicos ares da Semana de Arte Moderna de 1922. Tinha apenas 11 anos e vinha acompanhado do pai, o médico italiano Braz Reale, que o trazia de Itajubá (MG) para estudar em um colégio interno. Após dez horas de viagem, os dois desceram na estação do Brás.
"São Paulo era uma cidade pequena, de 400 mil habitantes no máximo. Provinciana, mas tinha uma característica própria: o Anhangabaú, com dois prédios em estilo francês, como o Teatro Municipal [réplica menor da ópera de Paris]. O centro era formado pelo triângulo das ruas 15 de Novembro, São Bento e Direita."
Foi nessa região que o jovem Reale cresceu, descobriu sua vocação para as leis e encontrou o lugar que marcaria sua vida na capital paulista: a Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Criada em 1827 pelo imperador dom Pedro 1º, saíram dali personalidades importantes da história, como os presidentes Prudente de Morais e Afonso Pena, além de magistrados, jornalistas e poetas.
"A faculdade de direito é a grande expressão da minha vida, onde publiquei as obras fundamentais iniciais", afirma.
Quando chegou, o pai do novo Código Civil, que entrou em vigor neste ano, era apenas um interno do Instituto Médio Dante Alighieri, na alameda Jaú, que muito influenciou o seu futuro. Em se tratando de um colégio estrangeiro, Reale teve de aprender italiano. Isso o fez retornar um ano em seus estudos e conhecer a mulher com quem se casaria mais tarde, Filomena Pucci Reale, ou simplesmente Nuce.
Os conhecimentos de latim, aprendidos ali ao longo de sete anos, foram o passaporte para a faculdade de direito. De quebra, interrompeu uma tradição de seis gerações de médicos na família.
Durante um ano, o garoto Reale viveu sozinho em São Paulo, morando na escola. Saía nos finais de semana para ver os padrinhos na rua Brigadeiro Luís Antônio. Dali, costumava ir ao cinema -mudo-, na Bela Vista, onde eles tinham um camarote. Os filmes de faroeste eram os preferidos dos adolescentes, lembra.
"No começo do Anhangabaú tinha um bar com um serviço de telefone ligado diretamente ao estádio do Palestra, no Parque Antártica, ou onde houvesse futebol. Eles irradiavam o jogo através do telefone e o povo ficava ali ouvindo, sentado em mesas, tomando chope e comendo salgadinhos", recorda. Veio daí o amor pelo Palestra Itália, hoje o Palmeiras.
Em 23, o pai de Reale se transferiu para São Paulo, após sofrer um acidente. Não podia mais montar para atender seus pacientes em Itajubá (MG). Ambos foram viver em uma pensão, ao lado da praça do correio central.
Um ano mais tarde, a família se mudou para a rua Florisbela, no início da rua Augusta, quando estourou a Revolução de 24. Dali, podiam ouvir o barulho de explosões, dos tiros, que vinham da região da Saracura Grande, atual avenida 9 de Julho, onde estavam posicionados canhões dos revolucionários. No lar dos Reale, o porão virou abrigo de guerra.
Em 1930, Reale ingressou na faculdade de direito "levando um trote tremendo". "Os veteranos nos prenderam com arame farpado, passando pelo paletó. Fizeram uma fila e toma tomar pinga e cantar bobagens, do largo São Francisco até a praça do Patriarca, atravessando o viaduto do Chá", afirma. Na praça da Sé, eles entraram de paletó e gravata no lago.
Tal selvageria, como define Reale, levou a turma a rever o trote do ano seguinte. Em vez do arame, os novos estudantes fizeram uma passeata contra Getúlio Vargas.
Nesse momento da vida paulistana, a faculdade de direito era o principal pólo cultural de São Paulo. "Quem tinha vocação para arte e letras não tinha outro caminho senão o direito. Era a faculdade das ciências não-tecnológicas. Ou se era médico ou engenheiro."
E também estava ali, nas famosas Arcadas, o principal centro político, de onde partiam sérios ataques ao interventor nomeado para São Paulo. "Os estudantes faziam sua bagunça, sua agitação fora, e, na hora em que a polícia [estadual] aparecia, eles se refugiavam na faculdade, que era o território livre de São Francisco, e chamavam o Exército". Sob o pretexto de proteger o patrimônio federal -a faculdade era da União-, os militares impediam a ação dos policiais estaduais.
Nessa época, os bares do centro eram os principais pontos de encontro dos estudantes. O mais famoso deles, segundo Reale, chamava-se Cidade München e ficava na ladeira Doutor Falcão, indo para a praça do Patriarca. "Havia um campeonato para ver quem bebia mais chopes. Eu era um bom bebedor, mas não chegava a ganhar porque tinha campeão que bebia de 50 a 70 chopes em uma única noite", conta. Havia também o bar Ponto Chic, no largo do Paissandu.
A vida política fervilhava no país e na faculdade. Em 1932, aos 22 anos, Reale publicou seu primeiro artigo em um jornal de estudantes: "A Crise da Liberdade Diante da Ameaça Socialista", que pregava a conciliação entre o liberalismo e o socialismo.
Com a explosão da revolução de 32, o estudante Reale virou um sargento, recebeu farda e um fuzil velho. Antes mesmo que seu batalhão estivesse formado ou treinado, haviam embarcado para a fronteira com o Paraná, em Taquari e Taí, no interior do Estado.
No front, ficou doente e teve de se afastar das trincheiras para serviços de comunicação. "No nosso setor não houve batalhas maiores até o dia em que os sulistas vieram com grande poder de tiro. Tínhamos uma só metralhadora. Fomos levados de roldão e demos início à maior retirada da história, que só acabou em Botucatu."
De volta à capital, Reale e demais amigos de turma foram aprovados pelo terceiro ano consecutivo nos exames finais, dispensados por causa do conflito.
Em 32 começou a amizade com o integralista Plínio Salgado, sua entrada no movimento e a publicação, com a ajuda do novo amigo, do primeiro livro, "O Estado Moderno". Nesse período, os camisas-verdes se reuniam em uma casa emprestada, no início da Brigadeiro Luís Antônio.
Sobre o movimento, o confronto de 33 é uma das lembranças mais marcantes. No primeiro desfile, na praça da Sé, integralistas e comunistas se enfrentaram em frente do edifício Santa Helena, que já não existe mais. Dois integralistas morreram baleados. Quatro anos mais tarde, o integralismo acabou.
Advogado formado e professor de latim e francês, Reale montou um escritório com amigos na rua São Bento, no centro, perto do largo São Francisco, e, em 1935, casou-se com Nuce, a ex-amiga do colégio Dante Alighieri. O casal foi morar em uma casa alugada na alameda Santos.
O paulistano dos anos 20 e 30 costumava frequentar os clubes Tietê 1, dos brasileiros, e Espéria, dos italianos, nos finais de semana. Limpo, o rio Tietê era palco de competições de nado e de remo ou servia como simples recreio para os dias de calor.
Em 1940, Reale voltou à faculdade de direito, agora estadualizada, para disputar uma vaga de professor de filosofia, em um tumultuado concurso que acabou sendo anulado. Após recorrer ao então presidente Getúlio Vargas, ele conseguiu a vaga.
Em 1949, Reale assumiu a reitoria da USP (Universidade de São Paulo), dando início ao processo de interiorização da instituição, com a criação de cursos em Ribeirão Preto, Bauru e São Carlos. Ele retornaria ao cargo em 69.
Por duas vezes, ocupou a Secretaria da Justiça, no governo de Ademar de Barros, em 47 -ano em que comprou o primeiro carro, aos 37 anos- e em 63.
Desde a faculdade, Reale escreveu mais de 50 livros, alguns traduzidos para outros idiomas, entre obras de direito e poemas.
Até hoje, o professor mantém a tradição diária de passar pelo escritório de advocacia, na avenida 9 de Julho, onde o filho Miguel Reale Júnior, ex-ministro da Justiça, também trabalha.



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