São Paulo, quinta-feira, 23 de novembro de 2006 |
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PASQUALE CIPRO NETO "Uma pedra que havia..."
NA SEMANA passada, falamos das formas "posto", "posto que", "suposto" e "suposto que". Começamos com Vinicius de Moraes e seu "Soneto de Fidelidade", em que a expressão "posto que" aparece ("Que não seja imortal posto que é chama") como equivalente a "visto que", "já que", "porque". Esse valor é definido pelo "Houaiss" como pertencente ao registro informal brasileiro. Nos registros clássicos, as formas "posto", "posto que", "suposto" e "suposto que" aparecem com o valor de "embora", ou seja, com valor concessivo. Vimos exemplos desse emprego em Machado e em... Em Drummond ("aquele do "tinha uma pedra no meio do caminho'", escrevi). Pois bem. Por que fiz referência a esse trecho de "No Meio do Caminho"? Justamente porque meu objetivo era contrapor Drummond a Drummond. Não me enganei, não, caro leitor. É isso mesmo. Um Drummond é o que em 1928 pôs em pânico gramatiqueiros e conservadores que torceram o nariz diante do célebre "No Meio do Caminho", sobretudo por causa das repetições nele presentes e pelo emprego do verbo "ter" no lugar de "haver" ("Tinha uma pedra no meio do caminho"). Receptivo à sintaxe popular, em que é mais do que comum esse valor do verbo "ter", Drummond nada mais fez do que valer-se da oralidade na elaboração de seu poema. O mundo desabou-lhe nas costas. O outro Drummond é o que inúmeras vezes se vale dos registros formais -muitas vezes eruditos- em seus escritos. Um belo exemplo disso foi visto na semana passada (o emprego de "posto" com valor clássico em "Um Boi Vê os Homens" - "Certamente, falta-lhes não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres e graves, por vezes"). Esse "outro" Drummond se faz vivo também no memorável poema "Legado" (do livro "Claro Enigma", de 1950), que, escrito sob a forma de soneto (!!!), assim começa: "Que lembrança darei ao país que me deu / tudo que lembro e sei, tudo quanto senti? / Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu / minha incerta medalha, e a meu nome se ri". O soneto de Drummond segue o modelo mais cultivado (o italiano), composto de dois quartetos e dois tercetos. Como lembra o "Houaiss", o último verso do soneto (freqüentemente chamado de "chave de ouro") "concentra em si a idéia principal do poema ou deve encerrá-lo de maneira a encantar ou surpreender o leitor". Pois sabe como é o segundo terceto de "Legado"? Prepare-se: "De tudo quanto foi meu passo caprichoso / na vida, restará, pois o resto se esfuma, / uma pedra que havia em meio do caminho". Leia com atenção e note que a locução "na vida" não se prende a "restará", forma verbal cujo sujeito é "uma pedra que havia em meio do caminho". Pois acabamos de chegar a um ponto crucial da nossa conversa. Percebeu, caro leitor, que, em clara referência a seu tão polêmico verso de 1928, Drummond trocou "tinha" por "havia"? No pouco espaço que me resta, não me atreverei a tecer nenhuma teoria a respeito, mas posso muito bem aproveitar o ilustre ensejo para lembrar, mais uma vez, que tão obscura quanto a condenação de formas orais em certos escritos é a delirante idéia de que a escola só deve trabalhar a "língua viva". E viva Drummond! É isso. inculta@uol.com.br Texto Anterior: Companhias dizem cumprir os contratos Próximo Texto: Trânsito: Palmeiras X Internacional altera o trânsito na zona oeste domingo Índice |
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