Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ENTREVISTA/RAFAEL MATESANZ
Brasil não faz lição de casa sobre doação de órgãos
Cirurgião coordenou processo que levou Espanha, em três anos, à liderança do ranking mundial nesse tipo de cirurgia
MÁRCIO PINHO
DA REPORTAGEM LOCAL
Para evitar que as doações de
órgãos continuem baixando no
Brasil, como ocorreu nos últimos três anos, e deixar o país
com um sistema de transplantes mais abrangente e rápido, é
preciso ter mais organização e
"vontade política".
A tese é defendida por Rafael
Matesanz, cirurgião que coordenou o processo que tirou a
Espanha de um nível mediano
em número de doações, em
1989, e a levou ao primeiro lugar do ranking mundial -onde
está desde 1992.
Presidente da ONT (Organização Nacional de Transplantes) da Espanha e do Conselho
Ibero-americano de Doação e
Transplantes, Matesanz diz
que o Brasil é um dos países da
América Latina que não está fazendo a "lição de casa" e que,
com uma média de cinco doadores por milhão de habitantes,
ficou estagnado em relação a
países como o Uruguai, que hoje tem 25 doadores por milhão.
Ele diz que o governo precisa
"decidir" mudar essa realidade.
E a mudança começa com uma
melhor organização, colocando
médicos coordenadores de
transplantes nos hospitais com
tempo e remuneração específicos para a função. Essa é a principal característica do "modelo
espanhol", recomendado pela
OMS (Organização Mundial de
Saúde) e adotado no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina,
que se tornaram referências.
Segundo Matesanz, o sistema de equipes visitando hospitais diariamente, pretendido
pelo SNT (Sistema Nacional de
Transplante), tende a naufragar. "É semelhante ao que havia
na Argentina e não dava certo",
diz. Veja sua entrevista concedida à Folha por telefone.
FOLHA - A Espanha tem o melhor
índice de doações do mundo -33,8
doadores por milhão de habitantes.
Como manter um sistema funcionando e na liderança por 15 anos?
RAFAEL MATESANZ - Começamos
em 1989 com uma taxa média
na Europa de 14 doadores por
milhão. Colocamos em todos os
hospitais pessoal muito treinado -os coordenadores de
transplante- que sabem manejar todo o processo, desde
que se detecta um possível doador até como se fala com a família. É uma organização, e, graças a ela, começamos a subir
imediatamente o número de
doadores. Triplicamos o número de doações -de 500 para
1.500. E a diferença em relação
aos outros só cresce.
FOLHA - No Brasil, no máximo de
50% dos doadores em potencial são
reportados para as centrais de transplante e apenas 170 hospitais estão
aptos a captar órgãos. Como é possível aumentar esses números?
MATESANZ - Basicamente, a diferença de um país para o outro
é que os doadores não são reportados. O problema do Brasil
é que ele é praticamente um
continente. Tem Estados com
índices de doação altíssimo, como Santa Catarina, e outros
com praticamente nada. Brasil
e México, os dois gigantes de
América Latina, têm dificuldade de se organizarem. A Espanha, um país muito menor, tem
155 hospitais credenciados.
FOLHA - O que o governo brasileiro
pode fazer para mudar esse quadro?
MATESANZ - É questão de vontade política. Nós consideramos que qualquer hospital que
tenha uma UTI pode ter um
serviço para reportar um possível doador. É uma questão de o
Estado querer ir por esse caminho. Seria preciso investir em
médicos para cuidarem do assunto transplantes nos hospitais. Não se pode pensar que esse seja um trabalho honorífico.
FOLHA - Na Espanha houve vontade política?
MATESANZ - Naquele momento
sim [final dos anos 80]. Começamos a propor esse sistema,
recebemos apoio e ele funcionou. Foi mais depressa em algumas regiões, mas logo em seguida as outras alcançaram. O
governo percebeu que o tratamento com transplante não só
é melhor do ponto de vista da
sobrevivência que a diálise, por
exemplo, mas que é muito mais
barato. Com o dinheiro que
economizamos ao triplicar o
número de transplantes renais,
financiamos todo o sistema, tudo o que cobram os coordenadores, o preço dos transplantes
de fígado, coração, pulmão etc.
O sistema é muito rentável, se
bem aplicado.
FOLHA - Por que outros países da
Europa, com tamanho semelhante
ao da Espanha e com uma situação
econômica favorável, não conseguem os mesmos resultados?
MATESANZ - Porque eles começaram antes e têm sistemas antiquados e viciados. É muito
mais fácil um país que está começando do zero implantar um
sistema moderno. O único país
europeu que andou subindo
progressivamente é a Itália. É
um país que no início dos anos
90 tinha taxa similar à do Brasil
de hoje. Atualmente, estão em
21 doadores por milhão. Mas a
Europa, no geral, está em 17.
FOLHA - No Brasil, a solução passa
por aumentar os investimentos, que
hoje são R$ 464 milhões ao ano, cerca de 0,02% do PIB?
MATESANZ - Acho que mais do
que investir mais é preciso investir melhor. O Brasil tem um
índice de doentes em diálise
muito grande. E deveria dedicar parte desse dinheiro que está dedicando. O custo de manter um dialisado é de cerca de
US$ 50 mil por ano.
FOLHA - E o modelo espanhol pode
dar certo em um país do tamanho
do Brasil, com um sistema de saúde
com deficiências e que em geral não
remunera médicos para cuidar especificamente dos transplantes?
MATESANZ - A dificuldade para
remunerar e ter equipes nos
hospitais é a explicação que é
dada por outros países também, como Alemanha e Suécia,
que têm visões distintas do modelo espanhol e que dizem ser
muito custoso mudar o sistema. Eu acho que o melhor caminho para o Brasil é mudar
sua visão. O modelo espanhol é
perfeitamente válido para o
Brasil. A mudança não seria fácil. Teria que começar a financiar os médicos para que trabalhassem no assunto transplantes. Tem pessoas no Brasil que
conhecem e confiam no sistema espanhol, mas a maioria
não vê uma possibilidade de
melhora com ele.
FOLHA - Ter dois Estados (Tocantins e Roraima) sem centrais de
transplante dificulta o trabalho?
MATESANZ - É difícil acontecer
um transplante sem uma central estadual. Na Espanha
aconteceu o mesmo com algumas regiões. É difícil que a população doe se não há um programa perto dela.
FOLHA - No Brasil, é a família que
tem que comunicar se o parente
morto será doador. E na Espanha?
MATESANZ - Também se consulta a família em todas as
oportunidades. É o melhor caminho.
FOLHA - O que pode explicar a queda no número de doações pelo terceiro ano consecutivo no Brasil. É a
falta de uma política estabelecida?
MATESANZ - Eu acho que está
mais ou menos estabilizado.
Não é uma queda. A taxa permanece entre 5 e 6 doadores
por milhão. Está estagnada,
não vai nem para frente e nem
para trás. O Brasil teria que fazer uma aposta muito clara pelo modelo espanhol, como fizeram os países vizinhos.
FOLHA - A criação de equipes especiais para visitar hospitais diariamente pode ser a solução?
MATESANZ - É o modelo americano. Não é muito diferente ao
que existia antes na Argentina e
não funcionava. É possível que
nos EUA funcione, mas nos
países latino-americanos é diferente. Acho que não vai funcionar. Um ponto fundamental
do modelo espanhol é que os
coordenadores estão dentro
das unidades intensivas. E se
não estão lá, talvez reportem
ainda menos os casos.
FOLHA - Quantas pessoas estão na
fila na Espanha? Em SP, Estado com
contingente semelhante ao da Espanha, eram 16,6 mil em 2006.
MATESANZ - Temos cerca de
5.000 pessoas na fila. Mas esse
é um aspecto que, por mais que
se transplante, continua tendo
muita gente na fila.
FOLHA - O Brasil está ficando para
trás na América do Sul? O Uruguai,
por exemplo, saltou de 19,2 para
25,2 doadores por milhão.
MATESANZ - O Uruguai cresceu
espetacularmente. A Argentina
estava em 6 doadores por milhão e agora está em 12. A Colômbia estava em 6 e agora está
em 10. Há outros países, como
Peru e Equador, entretanto,
que estão iniciando um trabalho novo e estão muito atrás do
Brasil. Esses países têm o sistema espanhol adaptado às suas
características.
FOLHA - Qual o papel da Rede Ibero-americana de Doação e Transplante desde a sua criação em 2005?
MATESANZ - Nos reunimos quatro vezes. A idéia é fazer uma
série de recomendações sobre
os passos a dar para estabelecer
um sistema de transplantes e
fomentar a doação de órgãos
nesses países.
FOLHA - Uma das recomendações
publicadas no último encontro é
que "os coordenadores devem ter
um alto nível de treinamento profissional". Sem cursos para os médicos
não é possível obter êxito?
MATESANZ - Acho que não é
possível. Uma das chaves do
modelo espanhol é dedicar todo o esforço do mundo à formação dos profissionais. Estamos
todo o ano fazendo cursos para
coordenadores, gente que trabalha nas UTIs, etc. Eles se fazem em toda a Espanha. Além
do que, o Brasil não está fazendo como outros países da América Latina que escolhem coordenadores médicos. No Brasil,
os coordenadores são enfermeiros e, nesse aspecto, o país
não está fazendo a lição de casa.
FOLHA - Como mudar a mentalidade das pessoas, já que muitas vezes
a família se nega a doar os órgãos
dos falecidos?
MATESANZ - Não pretendemos
mudar a mentalidade de todas
as famílias espanholas porque é
difícil mudar a mentalidade. Na
América Latina, de 50% a 80%
das famílias negam a doação. O
que fazemos é concentrar nos
familiares das pessoas que acabam de falecer, explicar bem e
de forma profissional.
Texto Anterior: País desperdiça 50% dos órgãos para transplante Próximo Texto: Frase Índice
|