São Paulo, domingo, 23 de dezembro de 2007

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ENTREVISTA/RAFAEL MATESANZ

Brasil não faz lição de casa sobre doação de órgãos

Cirurgião coordenou processo que levou Espanha, em três anos, à liderança do ranking mundial nesse tipo de cirurgia

MÁRCIO PINHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Para evitar que as doações de órgãos continuem baixando no Brasil, como ocorreu nos últimos três anos, e deixar o país com um sistema de transplantes mais abrangente e rápido, é preciso ter mais organização e "vontade política".
A tese é defendida por Rafael Matesanz, cirurgião que coordenou o processo que tirou a Espanha de um nível mediano em número de doações, em 1989, e a levou ao primeiro lugar do ranking mundial -onde está desde 1992.
Presidente da ONT (Organização Nacional de Transplantes) da Espanha e do Conselho Ibero-americano de Doação e Transplantes, Matesanz diz que o Brasil é um dos países da América Latina que não está fazendo a "lição de casa" e que, com uma média de cinco doadores por milhão de habitantes, ficou estagnado em relação a países como o Uruguai, que hoje tem 25 doadores por milhão. Ele diz que o governo precisa "decidir" mudar essa realidade.
E a mudança começa com uma melhor organização, colocando médicos coordenadores de transplantes nos hospitais com tempo e remuneração específicos para a função. Essa é a principal característica do "modelo espanhol", recomendado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) e adotado no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, que se tornaram referências. Segundo Matesanz, o sistema de equipes visitando hospitais diariamente, pretendido pelo SNT (Sistema Nacional de Transplante), tende a naufragar. "É semelhante ao que havia na Argentina e não dava certo", diz. Veja sua entrevista concedida à Folha por telefone.  

FOLHA - A Espanha tem o melhor índice de doações do mundo -33,8 doadores por milhão de habitantes. Como manter um sistema funcionando e na liderança por 15 anos?
RAFAEL MATESANZ
- Começamos em 1989 com uma taxa média na Europa de 14 doadores por milhão. Colocamos em todos os hospitais pessoal muito treinado -os coordenadores de transplante- que sabem manejar todo o processo, desde que se detecta um possível doador até como se fala com a família. É uma organização, e, graças a ela, começamos a subir imediatamente o número de doadores. Triplicamos o número de doações -de 500 para 1.500. E a diferença em relação aos outros só cresce.

FOLHA - No Brasil, no máximo de 50% dos doadores em potencial são reportados para as centrais de transplante e apenas 170 hospitais estão aptos a captar órgãos. Como é possível aumentar esses números?
MATESANZ
- Basicamente, a diferença de um país para o outro é que os doadores não são reportados. O problema do Brasil é que ele é praticamente um continente. Tem Estados com índices de doação altíssimo, como Santa Catarina, e outros com praticamente nada. Brasil e México, os dois gigantes de América Latina, têm dificuldade de se organizarem. A Espanha, um país muito menor, tem 155 hospitais credenciados.

FOLHA - O que o governo brasileiro pode fazer para mudar esse quadro?
MATESANZ
- É questão de vontade política. Nós consideramos que qualquer hospital que tenha uma UTI pode ter um serviço para reportar um possível doador. É uma questão de o Estado querer ir por esse caminho. Seria preciso investir em médicos para cuidarem do assunto transplantes nos hospitais. Não se pode pensar que esse seja um trabalho honorífico.

FOLHA - Na Espanha houve vontade política?
MATESANZ
- Naquele momento sim [final dos anos 80]. Começamos a propor esse sistema, recebemos apoio e ele funcionou. Foi mais depressa em algumas regiões, mas logo em seguida as outras alcançaram. O governo percebeu que o tratamento com transplante não só é melhor do ponto de vista da sobrevivência que a diálise, por exemplo, mas que é muito mais barato. Com o dinheiro que economizamos ao triplicar o número de transplantes renais, financiamos todo o sistema, tudo o que cobram os coordenadores, o preço dos transplantes de fígado, coração, pulmão etc. O sistema é muito rentável, se bem aplicado.

FOLHA - Por que outros países da Europa, com tamanho semelhante ao da Espanha e com uma situação econômica favorável, não conseguem os mesmos resultados?
MATESANZ
- Porque eles começaram antes e têm sistemas antiquados e viciados. É muito mais fácil um país que está começando do zero implantar um sistema moderno. O único país europeu que andou subindo progressivamente é a Itália. É um país que no início dos anos 90 tinha taxa similar à do Brasil de hoje. Atualmente, estão em 21 doadores por milhão. Mas a Europa, no geral, está em 17.

FOLHA - No Brasil, a solução passa por aumentar os investimentos, que hoje são R$ 464 milhões ao ano, cerca de 0,02% do PIB?
MATESANZ
- Acho que mais do que investir mais é preciso investir melhor. O Brasil tem um índice de doentes em diálise muito grande. E deveria dedicar parte desse dinheiro que está dedicando. O custo de manter um dialisado é de cerca de US$ 50 mil por ano.

FOLHA - E o modelo espanhol pode dar certo em um país do tamanho do Brasil, com um sistema de saúde com deficiências e que em geral não remunera médicos para cuidar especificamente dos transplantes?
MATESANZ
- A dificuldade para remunerar e ter equipes nos hospitais é a explicação que é dada por outros países também, como Alemanha e Suécia, que têm visões distintas do modelo espanhol e que dizem ser muito custoso mudar o sistema. Eu acho que o melhor caminho para o Brasil é mudar sua visão. O modelo espanhol é perfeitamente válido para o Brasil. A mudança não seria fácil. Teria que começar a financiar os médicos para que trabalhassem no assunto transplantes. Tem pessoas no Brasil que conhecem e confiam no sistema espanhol, mas a maioria não vê uma possibilidade de melhora com ele.

FOLHA - Ter dois Estados (Tocantins e Roraima) sem centrais de transplante dificulta o trabalho?
MATESANZ
- É difícil acontecer um transplante sem uma central estadual. Na Espanha aconteceu o mesmo com algumas regiões. É difícil que a população doe se não há um programa perto dela.

FOLHA - No Brasil, é a família que tem que comunicar se o parente morto será doador. E na Espanha?
MATESANZ
- Também se consulta a família em todas as oportunidades. É o melhor caminho.

FOLHA - O que pode explicar a queda no número de doações pelo terceiro ano consecutivo no Brasil. É a falta de uma política estabelecida?
MATESANZ
- Eu acho que está mais ou menos estabilizado. Não é uma queda. A taxa permanece entre 5 e 6 doadores por milhão. Está estagnada, não vai nem para frente e nem para trás. O Brasil teria que fazer uma aposta muito clara pelo modelo espanhol, como fizeram os países vizinhos.

FOLHA - A criação de equipes especiais para visitar hospitais diariamente pode ser a solução?
MATESANZ
- É o modelo americano. Não é muito diferente ao que existia antes na Argentina e não funcionava. É possível que nos EUA funcione, mas nos países latino-americanos é diferente. Acho que não vai funcionar. Um ponto fundamental do modelo espanhol é que os coordenadores estão dentro das unidades intensivas. E se não estão lá, talvez reportem ainda menos os casos.

FOLHA - Quantas pessoas estão na fila na Espanha? Em SP, Estado com contingente semelhante ao da Espanha, eram 16,6 mil em 2006.
MATESANZ
- Temos cerca de 5.000 pessoas na fila. Mas esse é um aspecto que, por mais que se transplante, continua tendo muita gente na fila.

FOLHA - O Brasil está ficando para trás na América do Sul? O Uruguai, por exemplo, saltou de 19,2 para 25,2 doadores por milhão.
MATESANZ
- O Uruguai cresceu espetacularmente. A Argentina estava em 6 doadores por milhão e agora está em 12. A Colômbia estava em 6 e agora está em 10. Há outros países, como Peru e Equador, entretanto, que estão iniciando um trabalho novo e estão muito atrás do Brasil. Esses países têm o sistema espanhol adaptado às suas características.

FOLHA - Qual o papel da Rede Ibero-americana de Doação e Transplante desde a sua criação em 2005?
MATESANZ
- Nos reunimos quatro vezes. A idéia é fazer uma série de recomendações sobre os passos a dar para estabelecer um sistema de transplantes e fomentar a doação de órgãos nesses países.

FOLHA - Uma das recomendações publicadas no último encontro é que "os coordenadores devem ter um alto nível de treinamento profissional". Sem cursos para os médicos não é possível obter êxito?
MATESANZ
- Acho que não é possível. Uma das chaves do modelo espanhol é dedicar todo o esforço do mundo à formação dos profissionais. Estamos todo o ano fazendo cursos para coordenadores, gente que trabalha nas UTIs, etc. Eles se fazem em toda a Espanha. Além do que, o Brasil não está fazendo como outros países da América Latina que escolhem coordenadores médicos. No Brasil, os coordenadores são enfermeiros e, nesse aspecto, o país não está fazendo a lição de casa.

FOLHA - Como mudar a mentalidade das pessoas, já que muitas vezes a família se nega a doar os órgãos dos falecidos?
MATESANZ
- Não pretendemos mudar a mentalidade de todas as famílias espanholas porque é difícil mudar a mentalidade. Na América Latina, de 50% a 80% das famílias negam a doação. O que fazemos é concentrar nos familiares das pessoas que acabam de falecer, explicar bem e de forma profissional.


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