São Paulo, terça-feira, 24 de fevereiro de 2004

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ARTIGO

A inversão carnavalesca

MARIA CLEMENTINA PEREIRA CUNHA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um ritual de inversão que reafirma os significados do dia-a-dia. Eis um modo bem antigo de entender as brincadeiras de Carnaval. Não resta dúvida de que essa tem sido a linguagem mais constante do Carnaval. No Brasil, desde muito cedo ela foi praticada nestes três dias de festa antes da Quaresma. Como qualquer língua, a inversão carnavalesca tem sintaxe e semântica próprias. Uma das regras é subverter as formas do dia-a-dia.
No Rio de Janeiro no tempo da Abolição e da República, por exemplo, esses sinais eram muito evidentes. Em uma folia comandada por Eros e Dionísio, a presença de tantos mascarados envergando fantasias como as aterradoras caveiras evocavam sem qualquer respeito o sobrenatural.
No país fortemente católico, os "diabinhos" eram a figura mais popular. Executavam proezas que faziam rir até as beatas de sacristia -embora assustassem a própria polícia. No mesmo período, os mais habilidosos dançarinos e capoeiras costumavam sair à frente dos zé-pereiras vestindo uma pesada fantasia de "velho". Com grandes cabeças de papel machê equilibradas sobre fatiotas do século 18 e com a ajuda de um cajado, faziam piruetas difíceis até para uma criança.
A semântica dessa língua carnavalesca ajuda a entender o sentido de muitas práticas dos outros dias do ano. Freqüentemente, elas são um modo de se referir aos opositores, exagerar e criticar suas características ou rir das tensões implícitas em determinadas relações sociais. Homens vestidos de mulher, presentes ainda hoje durante os dias de Carnaval, foram sempre uma forma de, arremedando trejeitos, projetar uma visão sobre as relações de gênero. No início do século 19, o entrudo dos escravos incluía pintar o rosto com alvaiade, desenhando caprichadas bochechas vermelhas sobre a face alva. Com isso, zombavam dos senhores. Os pobretões, negros ou brancos, que saíam nos zé-pereiras em décadas próximas, chegavam a trazer mensagens em suas fantasias. Vestiam casacas estilizadas, colocavam grandes barrigas postiças e, junto com os tambores que carregavam, levavam pequenos cartazes alusivos aos abastados. Desde o final do século, podemos encontrar negros nos cordões e blocos carnavalescos, em cortejos dourados de purpurina, com perucas empoadas e trajes do Antigo Regime, invertendo sinais para comentar a dura vida dos dias comuns.
Outros préstitos, de sociedades carnavalescas muito elegantes compostas pela fina flor da elite carioca, desfilavam nos domingos de Carnaval levando no alto de carros alegóricos conhecidas prostitutas para representar idéias políticas como a Liberdade ou a República quando não deusas da mitologia clássica. Aplaudidas, tais mulheres recebiam flores diretamente das mãos de esposas, mães e donzelas de família, que ocupavam as sacadas alugadas na elegante rua do Ouvidor.
Em outros momentos da festa, as mesmas mocinhas e senhoras estavam sujeitas a ouvir mascarados a denunciar em altos brados seus maridos, pais (ou amantes) pelo seu comportamento sexual ou padrões de conduta pública. Corno e ladrão já eram, àquela altura, os xingamentos prediletos que foliões protegidos pela máscara dirigiam aos passantes. Podia ser verdade, mas não era para ser tomado ao pé da letra. Mentiras de Carnaval, cujo significado só podia ser avaliado no contexto da folia.
Em pleno século 20, intelectuais dedicados à tarefa de definir o caráter nacional inventaram para o Brasil um "ethos" carnavalizado.
Uma identidade coletiva que, além de aplainar diferenças, fez com que todas as mentiras e inversões de sentido parecessem uma espécie de substrato cultural brasileiro. Somos, repetiam, o país do Carnaval.
Desde então, a idéia parece ter vingado. Seria mesmo um jeito de entender as troças que, nos últimos dias, agitam o Planalto Central: tucanos em carros alegóricos repletos de vestais duvidosas evoluem ao som de uma marchinha ocasião. Em outro bloco, petistas em fantasias emplumadas exibem longos bicos alaranjados, soltam as penas e ainda atravessam o samba.
Até quarta-feira...


Maria Clementina Pereira Cunha, 54, é professora aposentada do Departamento de História da Unicamp. Publicou, entre outros, "Ecos da Folia - Uma História Social do Carnaval Carioca entre 1880 e 1920" (Companhia das Letras, 2001) e, como organizadora, "Carnavais e Outras Frestas" (Editora da Unicamp-Cecult, 2002).

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