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ARTIGO
A inversão carnavalesca
MARIA CLEMENTINA PEREIRA CUNHA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Um ritual de inversão que reafirma os significados do dia-a-dia. Eis um modo bem antigo de
entender as brincadeiras de Carnaval. Não resta dúvida de que
essa tem sido a linguagem mais
constante do Carnaval. No Brasil,
desde muito cedo ela foi praticada nestes três dias de festa antes
da Quaresma. Como qualquer
língua, a inversão carnavalesca
tem sintaxe e semântica próprias.
Uma das regras é subverter as formas do dia-a-dia.
No Rio de Janeiro no tempo da
Abolição e da República, por
exemplo, esses sinais eram muito
evidentes. Em uma folia comandada por Eros e Dionísio, a presença de tantos mascarados envergando fantasias como as aterradoras caveiras evocavam sem
qualquer respeito o sobrenatural.
No país fortemente católico, os
"diabinhos" eram a figura mais
popular. Executavam proezas
que faziam rir até as beatas de sacristia -embora assustassem a
própria polícia. No mesmo período, os mais habilidosos dançarinos e capoeiras costumavam sair
à frente dos zé-pereiras vestindo
uma pesada fantasia de "velho".
Com grandes cabeças de papel
machê equilibradas sobre fatiotas
do século 18 e com a ajuda de um
cajado, faziam piruetas difíceis
até para uma criança.
A semântica dessa língua carnavalesca ajuda a entender o sentido de muitas práticas dos outros
dias do ano. Freqüentemente,
elas são um modo de se referir aos
opositores, exagerar e criticar
suas características ou rir das tensões implícitas em determinadas
relações sociais. Homens vestidos
de mulher, presentes ainda hoje
durante os dias de Carnaval, foram sempre uma forma de, arremedando trejeitos, projetar uma
visão sobre as relações de gênero.
No início do século 19, o entrudo
dos escravos incluía pintar o rosto
com alvaiade, desenhando caprichadas bochechas vermelhas sobre a face alva. Com isso, zombavam dos senhores. Os pobretões,
negros ou brancos, que saíam nos
zé-pereiras em décadas próximas,
chegavam a trazer mensagens em
suas fantasias. Vestiam casacas
estilizadas, colocavam grandes
barrigas postiças e, junto com os
tambores que carregavam, levavam pequenos cartazes alusivos
aos abastados. Desde o final do
século, podemos encontrar negros
nos cordões e blocos carnavalescos, em cortejos dourados de purpurina, com perucas empoadas e
trajes do Antigo Regime, invertendo sinais para comentar a dura vida dos dias comuns.
Outros préstitos, de sociedades
carnavalescas muito elegantes
compostas pela fina flor da elite
carioca, desfilavam nos domingos
de Carnaval levando no alto de
carros alegóricos conhecidas prostitutas para representar idéias políticas como a Liberdade ou a República quando não deusas da
mitologia clássica. Aplaudidas,
tais mulheres recebiam flores diretamente das mãos de esposas,
mães e donzelas de família, que
ocupavam as sacadas alugadas
na elegante rua do Ouvidor.
Em outros momentos da festa,
as mesmas mocinhas e senhoras
estavam sujeitas a ouvir mascarados a denunciar em altos brados seus maridos, pais (ou amantes) pelo seu comportamento sexual ou padrões de conduta pública. Corno e ladrão já eram,
àquela altura, os xingamentos
prediletos que foliões protegidos
pela máscara dirigiam aos passantes. Podia ser verdade, mas
não era para ser tomado ao pé da
letra. Mentiras de Carnaval, cujo
significado só podia ser avaliado
no contexto da folia.
Em pleno século 20, intelectuais
dedicados à tarefa de definir o caráter nacional inventaram para o
Brasil um "ethos" carnavalizado.
Uma identidade coletiva que,
além de aplainar diferenças, fez
com que todas as mentiras e inversões de sentido parecessem
uma espécie de substrato cultural
brasileiro. Somos, repetiam, o
país do Carnaval.
Desde então, a idéia parece ter
vingado. Seria mesmo um jeito de
entender as troças que, nos últimos dias, agitam o Planalto Central: tucanos em carros alegóricos
repletos de vestais duvidosas evoluem ao som de uma marchinha
ocasião. Em outro bloco, petistas
em fantasias emplumadas exibem longos bicos alaranjados,
soltam as penas e ainda atravessam o samba.
Até quarta-feira...
Maria Clementina Pereira Cunha, 54,
é professora aposentada do Departamento de História da Unicamp. Publicou,
entre outros, "Ecos da Folia - Uma História Social do Carnaval Carioca entre
1880 e 1920" (Companhia das Letras,
2001) e, como organizadora, "Carnavais
e Outras Frestas" (Editora da Unicamp-Cecult, 2002).
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