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ARTIGO
Mocotó em Madureira
GUSTAVO PIQUEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Agora, todos vão virar à esquerda e seguir direto até Madureira, comer um mocotó." Na
dispersão de uma das escolas
que encerrava o seu desfile na
Sapucaí, o comentarista da Globo repetia, pela enésima vez, o
tema favorito de narradores,
repórteres e agregados: o vínculo do Carnaval do Rio com a
"comunidade". Pareciam instruídos a nos fazer acreditar
que, sim, ainda trata-se de uma
festa essencialmente popular.
Produzida nos morros. Genuína. Esqueça dinheiro do tráfico,
puteiro gringo, espetáculo pra
mídia. Esqueça. Viva a "comunidade". O "barracão". "Fulana
é neta daquele lendário diretor
da Mangueira". Viva.
Viva a Miss Brasil Mutante.
Fez aulas de samba para defender suas duas escolas favoritas,
explica com sotaque gaúcho.
Nada mais "comunidade" do
que amar duas escolas adversárias. Algo semelhante a sair correndo do Palestra Itália para
pegar o segundo tempo do outro time do coração, que joga de
preto e branco no Pacaembu.
"Rola uma super troca de
energia com a comunidade" gaba-se Suzana Vieira, enquanto
dispara beijinhos.
Fernanda Lima vai além e,
desavisada, surge dando um senhor esporro em três negões da
"comunidade". Ao perceber
que está sendo filmada, contudo, esquece o chilique e veste
aquela alegria espontânea do
Carnaval, sambando e sorrindo. Moça autêntica.
O repórter, maroto, pede a
Paola Oliveira: "Adianta pra
gente o que a avenida toda vai
ver já já". Ela adianta. E você sabe o que "a avenida toda vai ver
já já". Sheron Menezes
(quem?) mostra orgulhosa como entupiu as coxas de fita crepe para ter mais liberdade.
Christiane Torloni é louvada
pelo locutor, pois precisou ir
até o barracão ensaiar sua versão de Marianne de Delacroix.
Até o barracão. Mas não deve
ter sido longe. Afinal, estamos
falando de "comunidade", não?
Deve morar a um, dois quarteirões de lá. No máximo.
E não pense que só celebridades transpiram esse maravilhoso espírito. Um mestre-sala, ao
exibir as 9.000 luzes de sua fantasia como faria o pior novo-rico, agradece a quem? À "comunidade".
Quando a câmera mergulha
entre alas de anônimos, eles se
estapeiam para aparecer -felizes, felizes- na TV. Talvez, assim, a "comunidade" aqui da
firma morra de inveja.
Não, não há como não se
emocionar. É mesmo uma festa
mágica. Pena ainda não haver
pay-per-view 24 horas para podermos, neste exato instante,
assistir direto de Madureira à
comunidade inteira batendo
um mocotó.
Ou você tem alguma dúvida
de que estão todos lá?
GUSTAVO PIQUEIRA é autor do fictício "Marlon
Brando Vida e Obra" (WMF/ Martins Fontes),
entre outros livros.
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