São Paulo, quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

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PASQUALE CIPRO NETO

"A mim me deste a suprema pobreza"


O reforço da forma "a mim" pela equivalente "me" confere à afirmação tom de inexorabilidade absoluta

O TEXTO DA SEMANA passada mexeu com muita gente. Foram inúmeras as mensagens, muitas das quais de leitores que só conheceram Taiguara depois de 1996, isto é, depois da morte do grande compositor.
Boa parte dos que escreveram seguiu a minha sugestão -entrar no site de Vinicius de Moraes e ler o antológico texto "Elegia na Morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, Poeta e Cidadão". Choro e emoção marcaram a reação de muitos dos leitores. Alguns disseram que não conseguiram chegar ao fim da obra; outros me pediram comentários e explicações sobre algumas passagens do grande texto de Vinicius.
Vamos, pois, a algumas passagens da "Elegia", começando justamente por essa palavra, que costuma nomear poemas líricos de tom terno e triste, melancólico. Escrita na segunda pessoa do singular (é com essa forma de tratamento que o poeta se dirige ao pai), a elegia de Vinicius apresenta predominantemente a linguagem formal, com algumas passagens que exigem bom domínio do vocabulário e/ou da estrutura desse tipo de linguagem.
Veja estes versos, do início do poema: "(...) Fragmentos da infância / Boiaram do mar de minhas lágrimas. / Vi-me eu menino / Correndo ao teu encontro. Na ilha noturna / Tinham-se apenas acendido os lampiões a gás, e a clarineta / De Augusto procrastinava a tarde". Que significa "apenas" nesse trecho do texto? Será sinônimo de "só", "somente", "exclusivamente"?
Não, caro leitor. "Apenas" aí indica processo que acabou de concluir-se. A passagem significa algo como "Nem bem tinham-se acendido os lampiões a gás" ou "Os lampiões a gás mal tinham-se acendido". Na informalidade, não é comum o emprego de "apenas" com esse sentido. E qual é o significado de "procrastinava"? Trata-se de uma flexão do verbo "procrastinar", que significa "delongar", "adiar", "postergar".
Mas o melhor da passagem toda não são essas escolhas lexicais do poeta; é a bela metáfora de "Fragmentos de infância boiaram do mar de minhas lágrimas". Essa metáfora é daquelas que o memorável protagonista de "O Carteiro e o Poeta" assinaria sem pestanejar. Vivido pelo extraordinário e saudoso ator italiano Massimo Troisi, o carteiro Mario Ruoppolo aprende o que é uma metáfora com ninguém menos do que Pablo Neruda (magistralmente vivido por Philippe Noiret).
Vinicius e Neruda, é bom que se diga, foram amigos, ambos diplomatas e poetas, amigos poetas, poetas amigos. Pode-se dizer, sem medo de errar, que exerceram franciscanamente a poesia, no mais puro sentido do que diz Vinicius nestoutra passagem da memorável "Elegia" que dedica ao pai: "Deste-nos pobreza e amor. A mim me deste / A suprema pobreza: o dom da poesia, e a capacidade de amar / Em silêncio". Que maravilha a transformação em concreto do abstrato "pobreza" como complemento do verbo "dar"! E que maravilha o inesperado par "pobreza e amor"!
Destaque-se também o barroco e belo emprego enfático da forma pleonástica "a mim me" em "A mim me deste a suprema pobreza: o dom da poesia". Quem foi que disse que pleonasmo é necessariamente sinônimo de obviedade ou redundância? Comum na poesia barroca (leiam-se os monumentais textos de Vieira), o reforço da forma tônica "a mim" pela equivalente átona "me" confere tom de inexorabilidade absoluta à pungente afirmação. É isso.

inculta@uol.com.br


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