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COTIDIANO IMAGINÁRIO
A vida em cliques
MOACYR SCLIAR
"Psicóloga estuda relação entre
usuários em salas de bate-papo:
"a vida real não funciona por cliques."
Informática, 12.abr.2000
Era uma vidinha monótona,
sem perspectivas: um medíocre
emprego numa grande empresa, as conversas inconsequentes com os amigos, o trânsito
congestionado. Mas aí ele voltava para casa e podia, enfim,
viver uma aventura.
Na Internet, claro. Navegador infatigável, percorrera um
território humano desconhecido e às vezes inquietante, até
encontrá-la, primeiro em uma
sala de bate-papo, depois em
mensagens privadas. Conhecia-a apenas por Solly (Solitária?) e pouco sabia de sua vida.
Mas eram, sim, almas-irmãs.
Partilhavam os mesmos gostos,
as mesmas inquietudes, as
mesmas secretas aspirações. E
ficavam horas trocando mensagens.
Quem não gostava, naturalmente, era a mulher. Estavam
casados havia oito anos, não
tinham filhos. Ela também trabalhava, claro -como sustentar uma casa, e a Internet, com
um emprego só?- e também
tinha o seu quinhão de amargura. Que despejava no marido: você fica aí nessa Internet e
não dá bola pra mim, não tenho com quem falar. Por isso,
quando ela chegava do emprego, lá pelas dez da noite, ele tinha de precipitadamente desligar o computador. Clique: lá se
ia a Solly. Lá se ia a única pessoa que para ele tinha importância.
Ah, se pudesse fazer o mesmo
com a mulher. Se houvesse um
dispositivo eletrônico capaz de
fazer criaturas sumirem... Tudo o que ele teria de fazer era
dar um clique, e pronto, a incômoda esposa estaria deletada
de sua existência.
Momentaneamente, claro.
Porque a verdade é que não
podia viver sem ela. Acostumara-se, pronto, sentia falta dela.
De modo que seu dispositivo
eletrônico permitiria que,
quando necessário, ele a acessasse. Seria a vida perfeita.
Seria? Não. Porque numa
dessas vezes a mulher retornaria do ciberespaço com um vírus qualquer. Um vírus que a
faria, por exemplo, muito
atraente aos olhos do vizinho
do lado. Ou seja: um vírus que
tornaria a sua vida incompreensível, infernal. Nem tudo,
infelizmente, se resolve por cliques.
O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no
jornal.
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