São Paulo, segunda-feira, 24 de abril de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

COTIDIANO IMAGINÁRIO
A vida em cliques

MOACYR SCLIAR

 "Psicóloga estuda relação entre usuários em salas de bate-papo: "a vida real não funciona por cliques."
Informática, 12.abr.2000

Era uma vidinha monótona, sem perspectivas: um medíocre emprego numa grande empresa, as conversas inconsequentes com os amigos, o trânsito congestionado. Mas aí ele voltava para casa e podia, enfim, viver uma aventura.
Na Internet, claro. Navegador infatigável, percorrera um território humano desconhecido e às vezes inquietante, até encontrá-la, primeiro em uma sala de bate-papo, depois em mensagens privadas. Conhecia-a apenas por Solly (Solitária?) e pouco sabia de sua vida. Mas eram, sim, almas-irmãs. Partilhavam os mesmos gostos, as mesmas inquietudes, as mesmas secretas aspirações. E ficavam horas trocando mensagens.
Quem não gostava, naturalmente, era a mulher. Estavam casados havia oito anos, não tinham filhos. Ela também trabalhava, claro -como sustentar uma casa, e a Internet, com um emprego só?- e também tinha o seu quinhão de amargura. Que despejava no marido: você fica aí nessa Internet e não dá bola pra mim, não tenho com quem falar. Por isso, quando ela chegava do emprego, lá pelas dez da noite, ele tinha de precipitadamente desligar o computador. Clique: lá se ia a Solly. Lá se ia a única pessoa que para ele tinha importância.
Ah, se pudesse fazer o mesmo com a mulher. Se houvesse um dispositivo eletrônico capaz de fazer criaturas sumirem... Tudo o que ele teria de fazer era dar um clique, e pronto, a incômoda esposa estaria deletada de sua existência.
Momentaneamente, claro. Porque a verdade é que não podia viver sem ela. Acostumara-se, pronto, sentia falta dela. De modo que seu dispositivo eletrônico permitiria que, quando necessário, ele a acessasse. Seria a vida perfeita.
Seria? Não. Porque numa dessas vezes a mulher retornaria do ciberespaço com um vírus qualquer. Um vírus que a faria, por exemplo, muito atraente aos olhos do vizinho do lado. Ou seja: um vírus que tornaria a sua vida incompreensível, infernal. Nem tudo, infelizmente, se resolve por cliques.


O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.


Texto Anterior: Campanha em asilo volta dia 2
Próximo Texto: Livros Jurídicos - Walter Ceneviva
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.