São Paulo, segunda-feira, 24 de julho de 2000


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SISTEMA CARCERÁRIO

Ex-traficante diz que sequestros e assassinatos são planejados por criminosos nas penitenciárias

Preso comanda crime de dentro da cadeia

PEDRO DANTAS
DA SUCURSAL DO RIO

Nos presídios do Rio de Janeiro, traficantes famosos e bandidos de segundo escalão vendem drogas, comandam o tráfico, planejam sequestros e execuções como se estivessem em plena liberdade.
"É a coisa mais simples do mundo. Não tem diferença entre a prisão e o mundo aqui fora. É o mesmo esquema, o mesmo preço", disse o ex-traficante R., que detalhou à Folha como os chefes do tráfico operam atrás das grades, com a cumplicidade de agentes do Desipe (Departamento do Sistema Penitenciário).
O relato de R. é confirmado pela defensora Márcia Fernandes, que coordena a implantação no Rio do Programa de Assistência Criminal da Defensoria Pública.
Chefe de uma equipe de 30 defensores, entre os quais apenas três homens, Márcia, 28, afirma que as defensoras já sofreram ameaças de morte e assédio sexual de agentes e diretores de presídios do Rio -que são agentes com diploma de direito.
"É um comércio descarado. Desde a carta até a cantina, tudo é cobrado ou pertence aos agentes. Trabalhando com uma média de um defensor para 500 detentos, escutei o diretor do (presídio) Vicente Peragibe nos chamar de X-9 (informante). Falta discernimento", diz Márcia.
A atuação de criminosos nas prisões foi admitida pela própria polícia do Rio no mês passado, durante o sequestro do pastor Isaías de Souza Maciel, 75.
Para achar o cativeiro de Maciel, o diretor da DAS (Divisão Anti-Sequestro), Fernando Moraes, apelou ao traficante Carlos Brás Victor da Silva, o Fiote, condenado por sequestro, homicídio e roubo. De dentro do presídio de Bangu 3, Fiote havia comandado o sequestro por telefone celular.
R. passou cinco anos na penitenciária Milton Dias Moreira, na zona norte do Rio, condenado por tráfico de drogas. Está em liberdade desde 1998.
Evangélico recém-convertido, veste calça de tergal e camisa abotoada até o colarinho. Ele não quer ser identificado temendo represálias dos que agora comandam seus antigos pontos-de-venda de drogas atrás das grades.
Teme também ser reconhecido por discípulos que tenta converter em pregações diárias pelas delegacias e penitenciárias do Rio.
Em dois dos cinco anos em que cumpriu pena, R. afirma que comandou pelo telefone celular o tráfico no morro que sua facção dominava. Tinha a cumplicidade dos agentes e de sua ex-mulher, que monitorava a situação.
"De 15 agentes penitenciários, pelo menos três eram ligados à nossa facção. Se o preso é de "responsa" (conceituado), o guarda só cobra quando a mercadoria entra (na cela)", conta.
"Lá (na prisão) sabia de tudo, se tinha alguém aqui fora na vacilação ou se tinha alguém para botar na boca (entrar no tráfico)", disse.
R. também traficava dentro da prisão, portava arma para sua segurança e escolheu seu sucessor no comando do tráfico por celular, pelo qual pagava semestralmente R$ 300 ao "guarda de ligação", como chama o agente penitenciário que fornecia o telefone, drogas e reservava celas para "festas" dentro da prisão.
Ele afirma que conseguia receber um quilo de maconha pagando R$ 500 ao "guarda de ligação".
"Não pagava pela cocaína porque colocava as buchas (papelotes) dentro do bolo da maconha e recebia como uma coisa só", afirma R.. Ele sorri ao lembrar do golpe, mas logo depois, diante do olhar de recriminação de um pastor de sua igreja, que acompanhou toda a entrevista, se corrige dizendo "perdão" e "aleluia".
As festas dentro da prisão, segundo R., aconteciam em celas reservadas para encontros entre detentos e garotas de programa. Foi uma festa como essa que provocou, em 99, a transferência de Denir Leandro da Silva, o Dênis da Rocinha, da penitenciária Serrano Neves (a Bangu 3, na zona oeste) para o presídio Bangu 1.
Dênis, que tem liberdade condicional prevista para o segundo semestre, ofereceu aos colegas um jantar com arroz à grega, salada fria, feijão fradinho, peru e pernil assados e sobremesa de frutas.
Segundo R., a liberdade também pode ser comprada, por R$ 5.000. O preso pode pedir transferência para a unidade médica e até sair pelo portão da frente, como fez em 99 Celso Luiz Rodrigues, o Celsinho da Vila Vintém.
Preso em Bangu 1, Celsinho foi transferido para o hospital penitenciário Heitor Carrilho, no complexo Frei Caneca, de onde saiu pela porta da frente. Hoje, o governo oferece R$ 20 mil por informações sobre seu paradeiro.
O ex-traficante diz que deixou o crime porque o excesso no uso de drogas e as agressões de rivais lhe trouxeram sequelas físicas, como a voz lenta e arrastada.
"O que mais me revolta quando eu penso na cadeia são os espancamentos na madrugada. Na maioria das vezes, causados por dívidas para o tráfico", diz.
R. pode ser considerado um traficante de segundo escalão. Entre os casos de bandidos mais poderosos está o de Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê -que comanda de Bangu 1 o tráfico nos morros do Juramento, Vicente de Carvalho e do Adeus, em Ramos, e na favela Pára-Pedro, em Colégio.
Em novembro, Uê ordenou o assassinato da advogada Ana Paula Macedo Ferreira, que prestava serviços ao seu rival Márcio Nepomuceno, o Marcinho VP.


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