São Paulo, segunda-feira, 24 de julho de 2006

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MOACYR SCLIAR

O protesto das sanguessugas


No Brasil, estão usando o nosso nome para designar deputados corruptos. Aqui vai um apelo: por favor, não façam isso

 CPI afirma que depoimento de sanguessuga mostra esquema "imenso" de fraude. Oitenta e dois por cento deles são da base aliada. Lista divulgada por CPI que investiga fraude na Saúde mostra ainda que 63% dos envolvidos são de partidos do mensalão. Comissão divulga 57 nomes de acusados de fazer parte de esquema de propina, apesar de sigilo de apuração decretado pelo STF. Os parlamentares acusados de envolvimento afirmaram não saber por que tiveram os nomes incluídos na lista e se disseram "surpresos". A maioria, no entanto, não respondeu. Alguns atribuem o elo com o escândalo a supostos mal-entendidos ou ao envolvimento de assessores

"POR MEIO deste manifesto, dirigido à população brasileira, desejamos manifestar nossa desconformidade com relação à humilhação de que somos vítimas. Nós somos as sanguessugas. Dizem que somos animais inferiores e de certo modo é verdade. Não passamos de vermes. Vivemos na água estagnada, em represas, em lagos. Nossa estrutura orgânica é muito simples. A única coisa que nos caracteriza, nos torna diferentes, é a ventosa. Graças a elas podemos sobreviver, pois nos alimentamos do sangue de animais que entram em nossas águas. Isso foi o que nos valeu a imagem penosa de que somos portadoras. Em defesa de nosso modo de vida, podemos dizer que não caçamos outros animais, não somos carnívoras. Ao contrário, queremos que os bichos com os quais convivemos permaneçam vivos. É fundamental para nós: que fiquem vivos e sadios.
Aos seres humanos, em geral, não prejudicamos. Ao contrário, nós lhes somos de muita valia. Houve época em que a sangria era muito usada no tratamento de doenças; os médicos descobriram que podíamos desempenhar esta função com mais eficiência. Broussais, grande médico de Paris, era nosso fã incondicional: aplicava centenas de sanguessugas por dia no mesmo paciente. Hemorróidas, por exemplo, eram tratadas pelas sanguessugas aplicadas localmente.
Coisa do passado, dirão alguns. De novo, é uma injustiça. Nosso valor está tendo comprovação na moderna medicina. Pesquisas mostram que nós, as modestas sanguessugas, elaboramos uma substância chamada hirudina eficaz para tratar, por exemplo, hematomas decorrentes de cirurgias plásticas e até para salvar reimplantes de dedo e orelha. A nossa hirudina permite que o sangue circule até o restabelecimento da circulação. Médicos indianos usam sanguessugas em pacientes com ulcerações e varizes nas pernas. E também ajudamos no tratamento de ataques cardíacos em pacientes que sofrem de doenças nas coronárias. Um hospital de Nova York recorre ao nosso auxílio para o tratamento da osteoartrite. A médica Arya Nielsen diz que o método "pode parecer nojento" (as coisas que temos de ouvir!) mas que funciona.
Agora, no Brasil, estão usando o nosso nome para designar deputados corruptos que se beneficiaram com a venda de ambulâncias superfaturadas. Aqui vai um apelo: por favor, não façam isso. Essas pessoas não secretam hirudina, não ajudam portadores de varizes nem de osteartrite. Não usem o nosso nome, nosso modesto nome, em vão. Continuem fazendo as sacanagens de vocês, mas não nos envolvam. Fizemos muito pela medicina de vocês. Mostrem-se, pelo menos, agradecidos."


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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