São Paulo, quinta-feira, 24 de agosto de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PASQUALE CIPRO NETO

"Como sói ocorrer"

O verbo "soer" é da mesma família de "insólito", que, como se sabe, significa "raro", "que não é habitual"

E NÃO É que muita gente ficou intrigada com a construção "Como sói ocorrer", que empreguei na última coluna? A passagem era esta: "Como sói ocorrer em textos jornalísticos (...), a frase tem problemas estruturais". Algumas pessoas chegaram a propor a substituição de "Como sói ocorrer" por "Como só ocorre". Será que pensaram nas conseqüências da adoção dessa construção? Parece um tanto perigoso afirmar que certas coisas só ocorrem no texto jornalístico, não?
Outras pessoas me disseram que procuraram "sói" nos dicionários e não encontraram. E não poderiam mesmo ter encontrado -seria como procurar "bebemos", "houve", "souber" ou qualquer flexão verbal. Aliás, o caro leitor certamente já sabe que "sói" é uma flexão verbal, não? Mas de qual verbo, santo Deus?!
O caminho mais simples e curto para a resposta talvez seja o da associação. Vamos direto ao ponto: "dói", "rói", "mói" e "corrói" são flexões de que verbos? De "doer", "roer", "moer" e "corroer", respectivamente, certo? Então "sói" é flexão de... Do verbo "soer", que, como diz o "Houaiss", é "pouco usado", o que, como sempre digo, não é motivo para que não seja visto ou estudado.
O bendito verbo "soer" (que vem do latim e tem formas correspondentes em outras línguas -"soler", em espanhol, "solere", em italiano) significa "acontecer com freqüência", "ser hábito ou costume", "costumar", "ser comum", "ser freqüente". A passagem "Como sói ocorrer", portanto, equivale a "Como costuma ocorrer", "Como é comum ocorrer". "Soer" é da mesma família de "insólito", que, como se sabe, significa "pouco usual", "que não é usual". "Insólito" é antônimo de "sólito", que vem justamente do particípio passado do verbo latino ("solére") que dá origem ao nosso "soer".
A esta altura, o leitor talvez queira saber como se conjuga "soer". Será que a primeira do singular do presente do indicativo é "eu sôo"? Seria, se o verbo fosse usado em todas as formas, mas não se registra seu emprego na primeira pessoa do singular do presente do indicativo e, conseqüentemente, em todo o presente do subjuntivo. Moral da história: não se registram frases como "Sôo caminhar à tarde", por exemplo.
Talvez seja conveniente analisar alguns aspectos morfológicos das flexões dos (poucos) verbos terminados em "-oer". Convém lembrar, por exemplo, que na terceira do singular do presente do indicativo a vogal final é "i" (e não "e", o que ocorre com quase todos os verbos terminados em "-er" -"bebe", de "beber"; "come", de "comer"). São incorretas as formas "doe", "moe", "roe" etc.
Como já vimos no início do texto, as formas abonadas são "dói", "mói", "rói" e "corrói", com "i" final (e com acento agudo no "o"). Temos aí a aplicação da regra de acentuação relativa aos ditongos abertos "ei" ("geléia", "idéia", "anéis"), "eu" ("escarcéu", véu", "céu") e "oi" ("apóiam", "herói", "estóico"). Não há acento em "pasteizinhos", "veuzinho" e "heroizinho", por exemplo, já que a sílaba tônica é "zi" (nos três casos).
A conversa sobre "soer" me permite, mais uma vez, lembrar que o conhecimento lingüístico não pode apoiar-se apenas no que é comum na língua do dia-a-dia. Ninguém morre por conhecer formas eruditas ou raras, ou seja, ninguém morre por aumentar o vocabulário. É isso.

inculta@uol.com.br


Texto Anterior: "Inquérito está à disposição", diz Lembo
Próximo Texto: Trânsito: Região do Morumbi pode ter bloqueios por causa de jogo
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.