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PASQUALE CIPRO NETO
"Como sói ocorrer"
O verbo "soer" é da mesma família de "insólito", que, como se sabe, significa "raro", "que não é habitual"
E NÃO É que muita gente ficou
intrigada com a construção
"Como sói ocorrer", que empreguei na última coluna? A passagem era esta: "Como sói ocorrer em
textos jornalísticos (...), a frase tem
problemas estruturais". Algumas
pessoas chegaram a propor a substituição de "Como sói ocorrer" por
"Como só ocorre". Será que pensaram nas conseqüências da adoção
dessa construção? Parece um tanto
perigoso afirmar que certas coisas só
ocorrem no texto jornalístico, não?
Outras pessoas me disseram que
procuraram "sói" nos dicionários e
não encontraram. E não poderiam
mesmo ter encontrado -seria como
procurar "bebemos", "houve", "souber" ou qualquer flexão verbal. Aliás,
o caro leitor certamente já sabe que
"sói" é uma flexão verbal, não? Mas
de qual verbo, santo Deus?!
O caminho mais simples e curto
para a resposta talvez seja o da associação. Vamos direto ao ponto:
"dói", "rói", "mói" e "corrói" são flexões de que verbos? De "doer",
"roer", "moer" e "corroer", respectivamente, certo? Então "sói" é flexão
de... Do verbo "soer", que, como diz o
"Houaiss", é "pouco usado", o que,
como sempre digo, não é motivo para que não seja visto ou estudado.
O bendito verbo "soer" (que vem
do latim e tem formas correspondentes em outras línguas -"soler",
em espanhol, "solere", em italiano)
significa "acontecer com freqüência", "ser hábito ou costume", "costumar", "ser comum", "ser freqüente". A passagem "Como sói ocorrer",
portanto, equivale a "Como costuma ocorrer", "Como é comum ocorrer". "Soer" é da mesma família de
"insólito", que, como se sabe, significa "pouco usual", "que não é usual".
"Insólito" é antônimo de "sólito",
que vem justamente do particípio
passado do verbo latino ("solére")
que dá origem ao nosso "soer".
A esta altura, o leitor talvez queira
saber como se conjuga "soer". Será
que a primeira do singular do presente do indicativo é "eu sôo"? Seria,
se o verbo fosse usado em todas as
formas, mas não se registra seu emprego na primeira pessoa do singular do presente do indicativo e, conseqüentemente, em todo o presente
do subjuntivo. Moral da história:
não se registram frases como "Sôo
caminhar à tarde", por exemplo.
Talvez seja conveniente analisar
alguns aspectos morfológicos das
flexões dos (poucos) verbos terminados em "-oer". Convém lembrar,
por exemplo, que na terceira do singular do presente do indicativo a vogal final é "i" (e não "e", o que ocorre
com quase todos os verbos terminados em "-er" -"bebe", de "beber";
"come", de "comer"). São incorretas
as formas "doe", "moe", "roe" etc.
Como já vimos no início do texto,
as formas abonadas são "dói", "mói",
"rói" e "corrói", com "i" final (e com
acento agudo no "o"). Temos aí a
aplicação da regra de acentuação relativa aos ditongos abertos "ei" ("geléia", "idéia", "anéis"), "eu" ("escarcéu", véu", "céu") e "oi" ("apóiam",
"herói", "estóico"). Não há acento
em "pasteizinhos", "veuzinho" e
"heroizinho", por exemplo, já que a
sílaba tônica é "zi" (nos três casos).
A conversa sobre "soer" me permite, mais uma vez, lembrar que o
conhecimento lingüístico não pode
apoiar-se apenas no que é comum
na língua do dia-a-dia. Ninguém
morre por conhecer formas eruditas
ou raras, ou seja, ninguém morre
por aumentar o vocabulário. É isso.
inculta@uol.com.br
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