|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros
De Mateus para Alcione
"Falam que eu tenho tendências esquizóides e que o ato que cometi foi fruto de agressividade íntima"
ELIANE TRINDADE
DE SÃO PAULO
"Querida Alcione". Assim
Mateus Meira saudava Antonio Alcione Carvalho em cartas enviadas de três presídios
de São Paulo. O destinatário
viveu a fantasia de um romance epistolar, alimentado
a decalques infantis e desenhos de corações flechados.
"Sou seu amiguinho", escrevia o atirador do shopping.
Alcione respondia com
mensagens apaixonadas e
dedicação. Mateus não revela sentimentos pelo correio.
Em nenhum trecho da meia
centena de cartas há sinal de
arrependimento pelo crime.
Em 17 de junho de 2001,
desdenha dos psiquiatras:
"Falam que eu tenho tendências esquizóides e que o ato
que cometi foi fruto de agressividade íntima." Vangloria-se de sua posição social: "Esse é o preço do ensino superior. Se eu não tivesse o 1º
grau, estaria num hospício."
"EU METRALHEI"
Sob a lupa da psicanalista
Luciana Saddi cresce a imagem de um assassino frio.
"Quando Mateus diz "Eu metralhei", não passa arrependimento", diz. "Para se defender do horror que praticou,
ele banaliza o que fez para tirar a intensidade do ato."
Atitude evidente na carta
de 15 de maio de 2001: "Alcione, fale-me mais de sua vida.
Por que você se apaixonou
por mim depois que eu metralhei o pessoal no cinema?"
Mateus é mais sensível às
limitações da vida na cadeia.
Especialmente, quando foi
para Avaré, presídio de segurança máxima. "Você fica impossibilitado de fazer um
monte de coisa." Sugere a Alcione que veja "Papillon"
(1973), filme que retrata uma
prisão degradante e brutal.
"É mais ou menos aquilo ali,
só que menos cruel."
Após introduções cada vez
mais impessoais, Mateus incumbia Alcione de achar
amigos, advogados e até de
movimentar sua conta. "Você me ama e precisa fazer isso." Pede que compre um celular e pague R$ 1.000 para
que o aparelho entre no presídio. Não foi atendido.
Chega a pedir R$ 300 mil.
"Não é tanto assim", pontua,
certo de sair da prisão se tiver
os "melhores criminalistas".
Em 7 de julho de 2002, escreve: "Meu alvará de soltura é
certo. Você quer que eu seja
solto? Então, arranje dinheiro logo, pombas."
A SECRETÁRIA
No começo, os pedidos
eram banais: revistas, envelopes e material de higiene.
"Mateus só pedia coisas caras. O perfume era bom; o leite, de marca. Coisa de menino enjoado", lembra Alcione. "Gastei mais que trocados com ele: uns R$ 12 mil."
Entra em cena a porção feminina de Alcione. "Pensando como mulher, ela acha
que, se o salvar, ele será dela", avalia Luciana. "A transexual tem a vivência de mulher e se comporta como tal."
A missão redentora foi forjada com doces palavras, entremeadas a ordens secas. A
irritação, por vezes, era clara:
"Já sei que você me ama, mas
não precisa ficar repetindo."
Alcione obedecia. Em 8 de
setembro de 2001, recebeu
uma engenhosa receita prescrita por Mateus para conseguir Rivotril, um calmante
tarja preta, na cadeia.
"Querida Al", começa ele
mais carinhoso que o habitual. "Quero que você faça
uma mistura. Ninguém mais
pode fazer isso por mim. 1)
Ingredientes: 400 g de leite
em pó DESNATADO. 2) 200
comprimidos de Rivotril 1
mg." Dá instruções de preparo e calcula os gastos. Depois, agradece a encomenda
enviada por Sedex.
Para atingir seus objetivos, lançava mão de truques
de sedução. Escrevia que Alcione era uma "heroína", listava suas preferências musicais. "Gostou dos Cranberries?", indaga ele sobre a
banda irlandesa. "Ouça a
banda Catatonia. É do País
de Gales", sugere, arrematando com coração flechado.
"Ele é esperto, usa símbolos dos apaixonados para em
seguida mandar a lista imensa de demandas", observa a
psicanalista. "Enquanto Alcione idealiza um amor, ele
tira tudo o que ela tem, como
se a matasse aos poucos."
Quando é contrariado, Mateus fica agressivo. "Alcionizinha, na próxima carta ou
sedex, responda-me prolixamente.. Senão vou mandar
você para aquele lugar, seu
esquizofrênico do car...!",
ameaça em maio de 2002.
DESEJOS
No começo, a indefinição
sexual de Alcione era motivo
de curiosidade. "Você não
acha que um travesti, bem feminino, que se parece realmente com uma mulher lindíssima, que afaste qualquer
dúvida de que seja mesmo
uma mulher, não desperta
desejos subconscientes num
homem?", indaga Mateus,
em 29 de julho de 2001.
Ele prossegue no tema:
"Vou confessar que passeando de madrugada com o meu
Chrysler, sob efeito de estimulantes, já fiquei confuso
algumas vezes."
Foi um Mateus bem seguro
que fez um retrato psicológico de Alcione, em 4 de junho
de 2002: "Envio esta carta para ajudá-la. Mostre-a ao seu
analista. Você é ou está extremamente doente. Devido à
sua personalidade ou a uma
das suas personalidades, você desenvolveu esse amor
platônico completamente
absurdo, fanático, doentio."
Mateus coloca-se como vítima de uma idealização. "Eu
gostaria imensamente, tenho
que fazer isso para o seu
bem, que você sumisse da
minha frente para sempre."
Termina com um "até nunca
mais". Blefe. As cartas cessaram um ano depois.
Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Danuza Leão: Agruras pessoais Índice | Comunicar Erros
|