São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2010

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GILBERTO DIMENSTEIN

"Scotch" na periferia


O índice de desemprego do mês de setembro revela extraordinária mudança na paisagem humana


NA SEMANA PASSADA, uma empresa que importa destilados revelou seus ambiciosos planos para cair no paladar dos emergentes e aposta que já pode, nesse segmento, tirar mercado da cachaça. O avanço do "scotch" na periferia é a tradução etílica de uma das melhores notícias do ano -talvez a melhor-, divulgada na quinta-feira.
As regiões metropolitanas de Porto Alegre, Rio de Janeiro e Belo Horizonte já vivem uma situação de pleno emprego. São Paulo, região onde o número de contratações mais se expandiu, não está distante dessa marca. A média geral é de 6,2%.
Há nesse indicador um óbvio motivo de comemoração, com a mudança do padrão de consumo de produtos e serviços. Mas existe aí uma dose de enganação: uma apropriação indébita, aceita pacificamente pela opinião pública, como se a taxa recorde de emprego fosse apenas uma obra governamental.
Por trás da apropriação indébita, entende-se em parte por que ainda faz tanto sucesso o discurso contra as privatizações.

 


Não quero aqui dizer que o governo não tem responsabilidade por parte do sucesso econômico. Mas a abertura de vagas no mercado de trabalho é, basicamente, resultado do espírito empreendedor que prospera apesar de todos os obstáculos, como a legislação trabalhista antiquada, a carga de impostos, os altos juros provocados pelos gastos públicos, a imensa burocracia e a corrupção.
As empresas privatizadas, em sua maioria, são hoje mais eficientes e pagam mais impostos, além de não fazerem rombos a serem bancados pelos contribuintes. Mas os números parecem pouco importar, certamente por ser mais fácil imaginar que os empresários são sórdidos e mesquinhos, enquanto o governo é protetor e responsável.
Governantes se apresentam como autores do aumento do emprego como se estivessem inaugurando uma ponte ou uma estrada.
Vende-se a privatização como conspiração contra o povo. Primário. Só que funciona. Até o PSDB caiu na armadilha desse discurso.

 


Analisado em detalhes, o índice do desemprego de setembro revela uma extraordinária mudança na paisagem humana. Nada cresce mais que o número de vagas abertas a quem tem mais de 11 anos de estudo, o equivalente ao ensino médio.
Muito mais do que qualquer esforço oficial, é essa demanda do mercado do trabalho que faz os brasileiros passarem a exigir mais e melhores escolas. Por isso o ensino superior virou objeto de desejo dos mais pobres, tão bem traduzido por Lula no ProUni, assim como o ensino técnico virou consenso na plataforma de todos os candidatos.
Para compensar a precariedade do sistema educacional, as empresas passaram a oferecer cursos de reforço em língua portuguesa e matemática, além de criarem universidades corporativas. Difícil encontrar grande empresa sem projetos comunitários -e alguns deles, por serem tecnologias sociais, ganharam escala em todo o país.
Todos esses programas de estímulo ao mérito da administração pública tiveram alguma influência da iniciativa privada -desde o sistema de arrecadação de impostos em Minas e São Paulo até as escolas-modelo de Pernambuco, passando pela segurança no Rio (lá os policiais ganham também pelas metas atingidas). É um empresário (Eike Batista) que vem doando equipamentos para as UPPs no Rio.

 


Todas as grandes experiências comunitárias brasileiras que podemos ver nos morros do Rio ou na periferia de São Paulo estão vinculadas a financiamentos privados, nos quais se mede quase sempre a relação custo-benefício.
Há marketing nesses projetos? É claro que sim. Mas também existe a vontade de fazer a diferença.

 


Também não se pode dizer que a sociedade civil seja santa, e o governo, pecador, mas não dá para aceitar que os governos não reconheçam o empreendedor ou o tachem de inimigo dos interesses públicos.

 


PS- Além do "scotch" da periferia, chamou a minha atenção a pesquisa do Datafolha sobre a memória do eleitor brasileiro.
Um em cada três eleitores (cerca de 30 milhões de brasileiros) não se lembra do candidato em quem acabou de votar para deputado federal. Entre os que só têm o ensino fundamental, a amnésia precoce chega a 40%.
Uma democracia não funciona bem quando os cidadãos não se lembram das pessoas em quem votaram, pois não sabem a quem fiscalizar nem de quem cobrar o que foi prometido nos palanques.


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