São Paulo, quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

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PASQUALE CIPRO NETO

"Mate a(à) vontade"


A infeliz proposta de eliminação sumária do acento indicador de crase não pode ser levada a sério


HÁ ALGUM tempo, comentei a infeliz proposta (ou esboço de proposta, não sei) de eliminação (sumária) do acento indicador de crase. Tentando apoiar-se numa célebre frase do grande poeta maranhense Ferreira Gullar ("A crase não foi feita para humilhar ninguém"), um diligente parlamentar queria "libertar" o povo de um dos tantos obstáculos para o domínio da modalidade escrita da língua.
Fruto de demagogia ou de desconhecimento da matéria em tela, a proposta (que fim levou?) não pode ser levada a sério. O acento indicador de crase é ineliminável, caro leitor. Boa prova disso está numa das questões do último vestibular da Unicamp, baseada em frases presentes numa "propaganda afixada em lugares nos quais se vende o chá Matte Leão" (...): "Matte à vontade. Mate a vontade. Mate à vontade".
A questão tinha dois itens. O primeiro era este: "Complete cada uma das construções com palavras ou expressões que explicitem as leituras relacionadas à propaganda". Como se vê, não se permitia a descontextualização, o que exigia que o candidato entendesse a mensagem transmitida em cada uma das sentenças e, portanto, captasse o que as ligava.
É claro que a "captação" passa pelo domínio do emprego do acento indicador de crase. Desprezando a primeira frase ("Matte à vontade"), o que diferencia "Mate a vontade" de "Mate à vontade"? Vamos lá: em "mate a vontade", temos uma flexão do verbo "matar", empregado como sinônimo de "extinguir" ou "saciar" ("mate/sacie a vontade/o desejo"); em "mate à vontade", podemos ter: a) o substantivo masculino "mate" (que pode ser bebido à vontade, à larga, a bel-prazer); b) a forma verbal "mate" ("Mate à vontade o desejo de tomar o chá").
Por motivos mais ou menos óbvios, vou deixar para o leitor a tarefa de completar as frases. Vamos, pois, ao segundo item da questão, que era este: "Retome a propaganda e explique o seu funcionamento, explicitando as relações morfológicas, sintáticas e semânticas envolvidas".
O último tópico (o relativo à semântica, ou seja, ao significado, ao conteúdo da mensagem) já foi explicado, certo? Bem, na verdade é imperativo dizer que, nesse texto, o que se consegue no campo semântico é comum na publicidade: a exploração da semelhança formal e fonética -e aí entramos nos outros dois aspectos da questão (os morfológicos e os sintáticos). Pode-se lembrar, por exemplo, que a flexão verbal "mate" e os substantivos "mate" e "Matte" se pronunciam do mesmo modo, o que também ocorre com as expressões "a vontade" e "à vontade" (nada de espichar o "à" de "à vontade").
Também é preciso lembrar que o acento grave (indicador de crase) é conseqüência da função sintática da locução "à vontade", modificadora de uma forma verbal subentendida, como "beba" ou "tome" ("Beba/Tome mate à vontade"). Em "mate a vontade", a expressão "a vontade" funciona como complemento (objeto direto) da flexão verbal "mate".
Posto isso, voltemos à suposta inutilidade do glorioso acento indicador de crase. E então? Será que o tal acento é mesmo desnecessário? Ainda que servisse só para os casos que vimos hoje, sua "sobrevida" seria indiscutível. Como o dito-cujo tem mil e uma utilidades... É isso.

inculta@uol.com.br


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