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CECILIA GIANNETTI
O fim da picada
Abandono é novamente a palavra que define esta velha-nova estação, em que sequer a temperatura mudou
A SECRETÁRIA SEMPRE acha graça quando troco, religiosamente, meu dispositivo antimosquito na tomada da parede. Já
tive dengue não uma, mas duas vezes. Meus pais também -ao mesmo
tempo que eu, na minha estréia naquele mal que transforma o doente
em zumbi. Hoje temo a versão hemorrágica do pesadelo. Pavor infundado? Responda-me após ter passado por um ou dois episódios de dengue -se sobreviver a eles.
Em meio à epidemia que varre a
cidade, achei que deveria contar ao
menos esse particular a vocês. Os
leitores não sabem muito sobre a
maior parte das pessoas que se lhe
dirigem nos jornais e revistas. Como
se quem escreve as notícias não as
viva vez em quando.
No meu caso, prefiro que as coisas
continuem mesmo deste jeito: vocês
aí conhecendo só parte do meu longo rosário de reclamações sobre cidades inchadas, não-cidadãos e
"des-governos", que desfio em crônicas quinzenais nesta Folha. E eu
sabendo de vocês apenas o que me
chega via e-mail. Cria-se assim um
pacífico convívio virtual.
Pacífico desde que eu não me
meta a falar do aparente epicentro
da urbanidade contemporânea, o
shopping center. Em dezembro,
quase fui linchada em praça (de alimentação) pública por ter escrito a
respeito do comportamento aloprado dos consumidores durante a
semana que precede a troca de presentes no Natal. Esqueçamos tal
tabu agora, pois, neste trópico, o
Natal só chega no verão. E ainda
estamos no começo do outono.
Outono "my ass"!, fala a amiga japonesa/nova-iorquina Kumiko,
que acaba de desembarcar de mala
e cuia no Rio. Já aprendeu três coisas essenciais sobre esse não-lugar:
1) Que todo carioca vai repetir seu
nome no diminutivo e rir toda vez
que o fizer; 2) Que nosso outono é
de mentira, assim como as políticas de prevenção e contenção da
epidemia de dengue; 3) Que deve
ter medo. Muito medo. Pois, como
dizia Hunter Thompson, não há
paranóia. E como diria ainda outro
gênio, Tim Maia, há a percepnóia.
Fazer o quê? Kumiko quer ser
boêmia da Lapa, gata do Posto 9,
flor do subúrbio.
Ao final da tarde, 35C; à noite,
30C. A questão já não é se está
quente ou frio. Porém que, quanto
mais duram as altas temperaturas,
mais tempo há para crescer os números de casos de dengue registrados (e os não registrados também).
Tudo isso vocês já sabem. Estão
em toda parte os números da doença -que há muito já deveria ter desaparecido. Vocês já leram que devem ter ocorrido não 48 casos de
morte por dengue no Rio em 2008,
mas o dobro disso; que são reportados mais de 50 casos por hora somente na cidade. As fotos que aparecem junto a notícias sobre dengue sugerem que em torno de
shoppings não há os mosquitos-de-risco. Que as bromélias de um
hotel em Copacabana ou poças de
água inerte no Arpoador não são
perigosas. Mas o mosquito está em
qualquer rua, onde circulam professores, advogados, garçons, enfermeiras, garis, publicitários e até
jornalistas; quem disse que vaso
ruim não quebra?
Gostaria que estivéssemos num
tempo em que alguém pudesse me
acusar de alarmista. Antes fosse
exagero meu, e não abandono.
Abandono é novamente a palavra
que define esta velha-nova estação,
em que sequer a temperatura mudou; que dirá a lentidão das autoridades a lidar com a epidemia que já
fez neste ano mais de 23 mil doentes só na capital.
Haja repelente, Kumiko!
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