São Paulo, terça-feira, 25 de março de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CECILIA GIANNETTI

O fim da picada

Abandono é novamente a palavra que define esta velha-nova estação, em que sequer a temperatura mudou

A SECRETÁRIA SEMPRE acha graça quando troco, religiosamente, meu dispositivo antimosquito na tomada da parede. Já tive dengue não uma, mas duas vezes. Meus pais também -ao mesmo tempo que eu, na minha estréia naquele mal que transforma o doente em zumbi. Hoje temo a versão hemorrágica do pesadelo. Pavor infundado? Responda-me após ter passado por um ou dois episódios de dengue -se sobreviver a eles.
Em meio à epidemia que varre a cidade, achei que deveria contar ao menos esse particular a vocês. Os leitores não sabem muito sobre a maior parte das pessoas que se lhe dirigem nos jornais e revistas. Como se quem escreve as notícias não as viva vez em quando.
No meu caso, prefiro que as coisas continuem mesmo deste jeito: vocês aí conhecendo só parte do meu longo rosário de reclamações sobre cidades inchadas, não-cidadãos e "des-governos", que desfio em crônicas quinzenais nesta Folha. E eu sabendo de vocês apenas o que me chega via e-mail. Cria-se assim um pacífico convívio virtual.
Pacífico desde que eu não me meta a falar do aparente epicentro da urbanidade contemporânea, o shopping center. Em dezembro, quase fui linchada em praça (de alimentação) pública por ter escrito a respeito do comportamento aloprado dos consumidores durante a semana que precede a troca de presentes no Natal. Esqueçamos tal tabu agora, pois, neste trópico, o Natal só chega no verão. E ainda estamos no começo do outono.
Outono "my ass"!, fala a amiga japonesa/nova-iorquina Kumiko, que acaba de desembarcar de mala e cuia no Rio. Já aprendeu três coisas essenciais sobre esse não-lugar: 1) Que todo carioca vai repetir seu nome no diminutivo e rir toda vez que o fizer; 2) Que nosso outono é de mentira, assim como as políticas de prevenção e contenção da epidemia de dengue; 3) Que deve ter medo. Muito medo. Pois, como dizia Hunter Thompson, não há paranóia. E como diria ainda outro gênio, Tim Maia, há a percepnóia.
Fazer o quê? Kumiko quer ser boêmia da Lapa, gata do Posto 9, flor do subúrbio.
Ao final da tarde, 35C; à noite, 30C. A questão já não é se está quente ou frio. Porém que, quanto mais duram as altas temperaturas, mais tempo há para crescer os números de casos de dengue registrados (e os não registrados também).
Tudo isso vocês já sabem. Estão em toda parte os números da doença -que há muito já deveria ter desaparecido. Vocês já leram que devem ter ocorrido não 48 casos de morte por dengue no Rio em 2008, mas o dobro disso; que são reportados mais de 50 casos por hora somente na cidade. As fotos que aparecem junto a notícias sobre dengue sugerem que em torno de shoppings não há os mosquitos-de-risco. Que as bromélias de um hotel em Copacabana ou poças de água inerte no Arpoador não são perigosas. Mas o mosquito está em qualquer rua, onde circulam professores, advogados, garçons, enfermeiras, garis, publicitários e até jornalistas; quem disse que vaso ruim não quebra?
Gostaria que estivéssemos num tempo em que alguém pudesse me acusar de alarmista. Antes fosse exagero meu, e não abandono. Abandono é novamente a palavra que define esta velha-nova estação, em que sequer a temperatura mudou; que dirá a lentidão das autoridades a lidar com a epidemia que já fez neste ano mais de 23 mil doentes só na capital.
Haja repelente, Kumiko!


Texto Anterior: Ministério da Saúde diz que eliminar a fila é uma das prioridades do PAC
Próximo Texto: Consumo: Leitora se queixa de celular que não recebe mensagens
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.