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PASQUALE CIPRO NETO
"Livros que não dá pra não ler"
Inúmeros leitores me escreveram para perguntar sobre a
frase que está no título desta coluna e encerra uma campanha publicitária da Folha. Que perguntam os leitores? Se em vez de "dá"
não se deveria empregar a forma
"dão" ("Livros que não dão pra
não ler"). Outros se incomodam
com o "pra" (querem que seja
substituído por "para").
Comecemos pelo caso mais simples (o segundo). Largamente empregada na linguagem coloquial
e em textos literários de autores
de nomeada, a forma "pra" não
encontra abrigo na linguagem escrita culta formal, em que é substituída por "para". Mas quem foi
que disse que em publicidade a
única linguagem possível é a formal? Nada a declarar, pois, sobre
o uso de "pra" nesse caso.
Passemos agora ao caso da forma "dá". Começo pelo fim, ou seja, pela resposta: é "dá" mesmo. E
por quê? Peço-lhe licença, caro
leitor, para usar um ou outro termo técnico, mas -prometo- só
o necessário. Vamos lá, pois. Suponha o seguinte texto: "Esses livros são ótimos. Não é possível
(ou "É impossível" ) não ler esses
livros". Nenhuma dúvida quanto
ao "é" desses casos, certo? Esse "é"
tem por sujeito (ai!) a oração
"não ler esses livros". É esse fato (o
de não ler esses livros) que não é
possível (ou é impossível).
É por isso que se emprega a forma verbal "é", no singular, o que,
por sinal, vale para todos os casos
em que um verbo tem por sujeito
toda uma oração. Outro exemplo
disso se vê em "Ainda falta apurar cinco urnas". O sujeito de "falta" não é "cinco urnas"; é a oração "apurar cinco urnas". É claro
que em "Ainda faltam cinco urnas" a história é outra. Agora, o
sujeito de "faltar" é "cinco urnas",
o que impõe o verbo no plural.
Pois bem, voltemos à frase da
Folha. Nela, a forma verbal "dá"
foi empregada justamente com o
valor de "é possível"; o que "não
dá" é o ato de não ler os livros.
Convém discutir pelo menos
mais dois aspectos da questão. O
primeiro diz respeito à inequívoca influência da proximidade no
processo de concordância (que,
no caso, se dá entre "livros" e o
verbo "dar"). Não custa repetir: o
sujeito de "não dá" não é "livros";
é o ato de não ler esses livros.
O segundo aspecto que se deve
discutir é justamente o emprego
de "dar" com o sentido de "ser
possível". De larguíssimo uso na
língua viva, esse sentido não encontra registro nos dicionários
clássicos ("Novo Aurélio Século
XXI" e "Houaiss", para citar os
mais recentes) e nos específicos
(de regência), como o de Celso
Luft e o de Francisco Fernandes.
O "Dicionário de Usos do Português do Brasil", do eminente
professor Francisco S. Borba, da
Unesp, registra o sentido, de que
dá dois exemplos: "Não dava para manter o script" (da revista
"Veja") e "Da jaula dos leões daria para escutar a conversa" (de
"Meu Pé de Laranja Lima", de J.
M. de Vasconcelos). O dicionário
do professor Borba se apóia nos
registros dos últimos 50 anos.
Como se vê, não há registros
clássicos do emprego do verbo
"dar" com o sentido de "ser possível", o que talvez permita a afirmação de que, em se tratando de
linguagem escrita formal, seu uso
não é adequado. Negar seu emprego e vida na outras variedades
da língua, no entanto, é querer
negar a força do vento. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
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