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São Paulo, quinta-feira, 25 de setembro de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

"Livros que não dá pra não ler"

Inúmeros leitores me escreveram para perguntar sobre a frase que está no título desta coluna e encerra uma campanha publicitária da Folha. Que perguntam os leitores? Se em vez de "dá" não se deveria empregar a forma "dão" ("Livros que não dão pra não ler"). Outros se incomodam com o "pra" (querem que seja substituído por "para").
Comecemos pelo caso mais simples (o segundo). Largamente empregada na linguagem coloquial e em textos literários de autores de nomeada, a forma "pra" não encontra abrigo na linguagem escrita culta formal, em que é substituída por "para". Mas quem foi que disse que em publicidade a única linguagem possível é a formal? Nada a declarar, pois, sobre o uso de "pra" nesse caso.
Passemos agora ao caso da forma "dá". Começo pelo fim, ou seja, pela resposta: é "dá" mesmo. E por quê? Peço-lhe licença, caro leitor, para usar um ou outro termo técnico, mas -prometo- só o necessário. Vamos lá, pois. Suponha o seguinte texto: "Esses livros são ótimos. Não é possível (ou "É impossível" ) não ler esses livros". Nenhuma dúvida quanto ao "é" desses casos, certo? Esse "é" tem por sujeito (ai!) a oração "não ler esses livros". É esse fato (o de não ler esses livros) que não é possível (ou é impossível).
É por isso que se emprega a forma verbal "é", no singular, o que, por sinal, vale para todos os casos em que um verbo tem por sujeito toda uma oração. Outro exemplo disso se vê em "Ainda falta apurar cinco urnas". O sujeito de "falta" não é "cinco urnas"; é a oração "apurar cinco urnas". É claro que em "Ainda faltam cinco urnas" a história é outra. Agora, o sujeito de "faltar" é "cinco urnas", o que impõe o verbo no plural.
Pois bem, voltemos à frase da Folha. Nela, a forma verbal "dá" foi empregada justamente com o valor de "é possível"; o que "não dá" é o ato de não ler os livros.
Convém discutir pelo menos mais dois aspectos da questão. O primeiro diz respeito à inequívoca influência da proximidade no processo de concordância (que, no caso, se dá entre "livros" e o verbo "dar"). Não custa repetir: o sujeito de "não dá" não é "livros"; é o ato de não ler esses livros.
O segundo aspecto que se deve discutir é justamente o emprego de "dar" com o sentido de "ser possível". De larguíssimo uso na língua viva, esse sentido não encontra registro nos dicionários clássicos ("Novo Aurélio Século XXI" e "Houaiss", para citar os mais recentes) e nos específicos (de regência), como o de Celso Luft e o de Francisco Fernandes.
O "Dicionário de Usos do Português do Brasil", do eminente professor Francisco S. Borba, da Unesp, registra o sentido, de que dá dois exemplos: "Não dava para manter o script" (da revista "Veja") e "Da jaula dos leões daria para escutar a conversa" (de "Meu Pé de Laranja Lima", de J. M. de Vasconcelos). O dicionário do professor Borba se apóia nos registros dos últimos 50 anos.
Como se vê, não há registros clássicos do emprego do verbo "dar" com o sentido de "ser possível", o que talvez permita a afirmação de que, em se tratando de linguagem escrita formal, seu uso não é adequado. Negar seu emprego e vida na outras variedades da língua, no entanto, é querer negar a força do vento. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

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