São Paulo, quinta-feira, 25 de outubro de 2007

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PASQUALE CIPRO NETO

"Talvez você procurava/procurasse..."


Em muitos casos, a escolha do modo verbal (indicativo ou subjuntivo) pode definir os matizes do que se expressa

NA SEMANA PASSADA, ao fazer a tradução de uma mensagem ("Forse cercavi...") do Google italiano (www.google.it), apresentei duas opções ("Talvez você procurava/procurasse..."). Alguns leitores perguntaram por que dei duas soluções. Outros, categóricos, afirmaram que a única forma cabível é "Talvez você procurasse".
Devagar com o andor. A questão vai muito além do certo/errado. De início, é bom lembrar que "procurava" é do modo indicativo, enquanto "procurasse" é do subjuntivo (as duas flexões são do mesmo tempo, o pretérito imperfeito). Como se sabe, no modo subjuntivo os processos verbais são postos no plano da dúvida, suposição ou desejo; no indicativo esses processos ficam no plano da realidade, certeza ou confirmação.
Em certos casos, o modo pode definir os matizes do processo. Quando se diz algo como "Supõe-se que Renan sabe de coisas escabrosas", manifesta-se (com "sabe", do presente do modo indicativo) a quase certeza de que Renan tem a chave do Inferno do Congresso. A troca de "sabe" por "saiba" ("Supõe-se que Renan saiba") atenua essa certeza.
É esse o ponto-chave que se deve ponderar quando se analisa o caso da semana passada ("Talvez você procurava/procurasse"). Alguém dirá que com "talvez" se expressa dúvida, portanto o subjuntivo é de lei.
Vejamos o que dizem os dicionários. Em boa análise, o "Aurélio" diz que, quando anteposto ao verbo, o advérbio "talvez" costuma levá-lo ao subjuntivo ("Talvez chova hoje" e "Talvez um dia meu amor se extinga" são os exemplos dados; o último é de Machado); quando posposto, leva o verbo para o indicativo. O problema é que nos exemplos do "Aurélio" para a segunda opção o "talvez" continua anteposto ao verbo ("O oficial era moço, talvez não tinha trinta anos"; "Olhos cerrados, boca entrecerrada; / Parecia dormir. Talvez dormia" -o primeiro é de Garret; o segundo, de Alberto de Oliveira).
Na verdade, o que se vê nos dois últimos exemplos é o emprego (legítimo) do modo indicativo em "tinha" e "dormia", formas com as quais se indica mais certeza do que dúvida em relação aos processos que expressam. O comentário do "Aurélio" poderia ser ilustrado com frases como "Ele tinha talvez trinta anos" e "Parecia dormir. Dormia, talvez".
Sem fazer referência à posição de "talvez" em relação à forma verbal, o "Houaiss" diz que esse advérbio é "empregado freqüentemente com o verbo no subjuntivo e, raras as vezes, com o verbo no indicativo". Sim, feitas as contas, é mesmo muito mais freqüente o emprego de "talvez" com o modo subjuntivo, mas não se podem deixar de lado os aspectos que analisamos aqui.
Para encerrar, vejamos o que fez Machado neste passo de "Memórias Póstumas" (do capítulo 11, "O Menino é Pai do Homem"): "Cresci; e nisso é que a família não interveio; cresci naturalmente, como crescem as magnólias e os gatos. Talvez os gatos são menos matreiros, e, com certeza, as magnólias são menos inquietas do que eu era na minha infância".
Percebeu? Machado empregou o indicativo em "talvez os gatos são", o que confirma o que o (con)texto prenuncia: quem cresce sem a intervenção da família e como crescem as magnólias e os gatos é mesmo mais matreiro que os bichanos. É isso.

inculta@uol.com.br


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