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Vida nada cor-de-rosa
Investigador da polícia, transexual, acusado de assalto é preso e algemado em maca de hospital em Campinas
LAURA CAPRIGLIONE
MARLENE BERGAMO
ENVIADAS ESPECIAIS A CAMPINAS (SP)
Sensacional: policial civil
vestido de mulher é preso pela
PM depois de roubar um celular. O apresentador da tevê escracha. Propõe aos telespectadores: "Geeente, repara no detalhe da lingerie vermelha do
rapaz!" Um blog de policiais civis segue no mesmo tom:
"Grande exemplo de veado
campineiro".
Na sexta-feira, o Condepe,
Conselho Estadual de Defesa
dos Direitos da Pessoa Humana, da Secretaria da Justiça,
apresentou a denúncia: "Gravíssimas violações dos direitos
humanos envolvem a prisão do
policial civil Renato Pereira de
Azevedo".
Aos fatos: Azevedo, 30, é investigador de polícia de Campinas. Transexual, prefere ser
chamada de Renata. Foi presa
no dia 15 sob a acusação de roubo -artigo 157, que pressupõe
"grave ameaça" à vítima.
Ela não portava arma alguma
-alicate de cutícula que fosse.
Quando lhe abriram a bolsa, tudo o que encontraram foram
"coisas de mulher" -maquiagem, maquiagem e mais maquiagem-, além de um celular
Samsung SGH-C276 (preço: R$
139), que não era seu.
Renata estava surtada. Xingou tudo e todos. Na Corregedoria da Polícia em Campinas,
para onde foi levada, distribuiu
cusparadas. Ao delegado titular, perguntou: "Você é o Serra?", "Você é o Lula?", "Você é
uma maricona?" Mesmo algemada, arremessou na autoridade a sandália que calçava. Cantou em italiano para o pai, que
então já acompanhava a prisão
do filho. Tirou a roupa.
Às 20h, a psiquiatra do Samu
(Serviço de Atendimento Médico de Urgência) Gabriela di
Mattia diagnosticou "transtorno afetivo bipolar -episódio
maníaco", e aplicou o sossega-leão: Haldol (antipsicótico) e
prometazina (hipnótico). Renata nem assinou o boletim de
ocorrência. Apagou.
Acordou amarrada pelo peito
e braços a uma maca no PS do
Hospital das Clínicas de Campinas. E havia algemas (uma argola no braço e outra na cama).
Um PM armado fazia a escolta
da jovem magricela.
Entre as 22h57 do dia 15 e as
9h do dia 20, quando foi levada
para um leito na Psiquiatria do
Hospital das Clínicas, a investigadora Renata ficou exatas 100
horas e 43 minutos deitada de
costas, amarrada e algemada.
Na terça-feira (20), o advogado do Condepe e especialista
em direitos de minorias, Francisco Lucio França, foi vê-la.
Assim que se apresentou, Renata pediu: "Preciso de um banho, doutor. Estou imunda."
Maria Cecília Lopes Oliveira
Pereira de Azevedo, 55, viu o filho. "Todo urinado", lembra
(para a mãe, ainda é "Renato").
O psiquiatra Paulo César
Sampaio, perito criminal da Secretaria Especial de Direitos
Humanos da Presidência da
República e membro do Condepe, encontrou a policial na
internação na última quarta-feira (21) ainda presa à cama.
Depois de analisar relatórios
médicos e entrevistar a mãe, o
psiquiatra concluiu: "Está claro
que a paciente não pode ser responsabilizada por seus atos durante um surto psicótico; portanto, não poderia responder
por roubo e estar algemada",
disse. "É de uma injustificável
crueldade física e psicológica
algemá-la na ala psiquiátrica."
Renata mora com a família
em uma casa de classe média.
Cresceu cercada pelos cuidados da mãe, da avó e de uma babá. Tem dois irmãos, um deles
engenheiro mecatrônico. Estudou em colégios tradicionais de
Campinas, como o Sagrado Coração de Jesus e o Atheneu. É
quintanista de Direito na PUC.
Prestou concurso para investigador de polícia. Passou.
O primeiro silicone, Renata
nunca esquece. Foi aplicado
aos 18 anos -nos quadris. Foi
também aos 18 a primeira tentativa de suicídio, e a primeira
internação. Ainda tinha aparência masculina quando entrou para a polícia, aos 21 anos.
Aos 24, passou a viver 100%
como mulher -roupas, cabelo,
maquiagem, unhas. Com 25,
"colocou peito".
Em 2005, em documento oficial, um delegado assim retratou a transformação do/da investigador/a: "Renato mudou
seu comportamento. Em curto
espaço de tempo estava totalmente trajado de mulher, com
pinturas e esmaltes correspondentes à vaidade feminina, às
vezes muito ousados. (...) Por
essa mudança radical, o policial
Renato foi colocado à disposição, para que fosse encaminhado a outras funções e não à atividade policial." Nos oito anos
de polícia, entre licenças médicas, foram cinco transferências
de departamento.
A mãe percebeu, no dia 13,
que Renata não estava bem:
"Ele estava agitadíssimo. Era
mau sinal." Renata dizia que
era filha de Silvio Santos, ouvia
vozes demoníacas em músicas
de Ivete Sangalo, tinha a fórmula secreta da loteria.
Na quinta à noite (14), apareceu em um bar no centro de
Campinas. Brigou, xingou, chutou, gritou, cantou, chorou.
No dia seguinte, hora do almoço, reapareceu. Mesmos
trajes (peruca ruiva, camiseta
laranja, calça e sandálias altas).
Nem dormira. Estava pior.
Exigiu o celular de uma funcionária do bar e espatifou-o no
chão. Saiu desvairada. Topou
com um rapaz dentro de um
carro VW Parati. Mostrou a
carteira de policial e, aos gritos,
tomou-lhe o celular. À Folha, o
rapaz disse que ficou confuso:
"Primeiro eu vi um travesti, depois a carteira de polícia. Meu
celular foi levado. O cara não
fugiu. Saiu andando e sentou
em uma mureta. Eu não sabia o
que pensar." Renata foi presa.
"Fiquei com pena. Estava na
cara de que a moça ou moço, sei
lá, não tinha a menor consciência do que estava acontecendo", disse uma testemunha.
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