São Paulo, domingo, 25 de outubro de 2009

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Vida nada cor-de-rosa

Investigador da polícia, transexual, acusado de assalto é preso e algemado em maca de hospital em Campinas

LAURA CAPRIGLIONE
MARLENE BERGAMO
ENVIADAS ESPECIAIS A CAMPINAS (SP)

Sensacional: policial civil vestido de mulher é preso pela PM depois de roubar um celular. O apresentador da tevê escracha. Propõe aos telespectadores: "Geeente, repara no detalhe da lingerie vermelha do rapaz!" Um blog de policiais civis segue no mesmo tom: "Grande exemplo de veado campineiro".
Na sexta-feira, o Condepe, Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, da Secretaria da Justiça, apresentou a denúncia: "Gravíssimas violações dos direitos humanos envolvem a prisão do policial civil Renato Pereira de Azevedo".
Aos fatos: Azevedo, 30, é investigador de polícia de Campinas. Transexual, prefere ser chamada de Renata. Foi presa no dia 15 sob a acusação de roubo -artigo 157, que pressupõe "grave ameaça" à vítima.
Ela não portava arma alguma -alicate de cutícula que fosse. Quando lhe abriram a bolsa, tudo o que encontraram foram "coisas de mulher" -maquiagem, maquiagem e mais maquiagem-, além de um celular Samsung SGH-C276 (preço: R$ 139), que não era seu.
Renata estava surtada. Xingou tudo e todos. Na Corregedoria da Polícia em Campinas, para onde foi levada, distribuiu cusparadas. Ao delegado titular, perguntou: "Você é o Serra?", "Você é o Lula?", "Você é uma maricona?" Mesmo algemada, arremessou na autoridade a sandália que calçava. Cantou em italiano para o pai, que então já acompanhava a prisão do filho. Tirou a roupa.
Às 20h, a psiquiatra do Samu (Serviço de Atendimento Médico de Urgência) Gabriela di Mattia diagnosticou "transtorno afetivo bipolar -episódio maníaco", e aplicou o sossega-leão: Haldol (antipsicótico) e prometazina (hipnótico). Renata nem assinou o boletim de ocorrência. Apagou.
Acordou amarrada pelo peito e braços a uma maca no PS do Hospital das Clínicas de Campinas. E havia algemas (uma argola no braço e outra na cama). Um PM armado fazia a escolta da jovem magricela.
Entre as 22h57 do dia 15 e as 9h do dia 20, quando foi levada para um leito na Psiquiatria do Hospital das Clínicas, a investigadora Renata ficou exatas 100 horas e 43 minutos deitada de costas, amarrada e algemada.
Na terça-feira (20), o advogado do Condepe e especialista em direitos de minorias, Francisco Lucio França, foi vê-la. Assim que se apresentou, Renata pediu: "Preciso de um banho, doutor. Estou imunda." Maria Cecília Lopes Oliveira Pereira de Azevedo, 55, viu o filho. "Todo urinado", lembra (para a mãe, ainda é "Renato").
O psiquiatra Paulo César Sampaio, perito criminal da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e membro do Condepe, encontrou a policial na internação na última quarta-feira (21) ainda presa à cama. Depois de analisar relatórios médicos e entrevistar a mãe, o psiquiatra concluiu: "Está claro que a paciente não pode ser responsabilizada por seus atos durante um surto psicótico; portanto, não poderia responder por roubo e estar algemada", disse. "É de uma injustificável crueldade física e psicológica algemá-la na ala psiquiátrica."
Renata mora com a família em uma casa de classe média. Cresceu cercada pelos cuidados da mãe, da avó e de uma babá. Tem dois irmãos, um deles engenheiro mecatrônico. Estudou em colégios tradicionais de Campinas, como o Sagrado Coração de Jesus e o Atheneu. É quintanista de Direito na PUC. Prestou concurso para investigador de polícia. Passou.
O primeiro silicone, Renata nunca esquece. Foi aplicado aos 18 anos -nos quadris. Foi também aos 18 a primeira tentativa de suicídio, e a primeira internação. Ainda tinha aparência masculina quando entrou para a polícia, aos 21 anos.
Aos 24, passou a viver 100% como mulher -roupas, cabelo, maquiagem, unhas. Com 25, "colocou peito".
Em 2005, em documento oficial, um delegado assim retratou a transformação do/da investigador/a: "Renato mudou seu comportamento. Em curto espaço de tempo estava totalmente trajado de mulher, com pinturas e esmaltes correspondentes à vaidade feminina, às vezes muito ousados. (...) Por essa mudança radical, o policial Renato foi colocado à disposição, para que fosse encaminhado a outras funções e não à atividade policial." Nos oito anos de polícia, entre licenças médicas, foram cinco transferências de departamento.
A mãe percebeu, no dia 13, que Renata não estava bem: "Ele estava agitadíssimo. Era mau sinal." Renata dizia que era filha de Silvio Santos, ouvia vozes demoníacas em músicas de Ivete Sangalo, tinha a fórmula secreta da loteria.
Na quinta à noite (14), apareceu em um bar no centro de Campinas. Brigou, xingou, chutou, gritou, cantou, chorou.
No dia seguinte, hora do almoço, reapareceu. Mesmos trajes (peruca ruiva, camiseta laranja, calça e sandálias altas). Nem dormira. Estava pior.
Exigiu o celular de uma funcionária do bar e espatifou-o no chão. Saiu desvairada. Topou com um rapaz dentro de um carro VW Parati. Mostrou a carteira de policial e, aos gritos, tomou-lhe o celular. À Folha, o rapaz disse que ficou confuso: "Primeiro eu vi um travesti, depois a carteira de polícia. Meu celular foi levado. O cara não fugiu. Saiu andando e sentou em uma mureta. Eu não sabia o que pensar." Renata foi presa.
"Fiquei com pena. Estava na cara de que a moça ou moço, sei lá, não tinha a menor consciência do que estava acontecendo", disse uma testemunha.

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