São Paulo, domingo, 25 de outubro de 2009

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GILBERTO DIMENSTEIN

Reflexões de um ex-traficante


Quando ele foi preso, já tinha passado dos 30 anos e se sentia impune -era o que psicólogos chamam de "adultescente"


HOJE é o quinto aniversário do dia mais solitário na vida de Jaques Chulam, um paulistano de classe média alta, ex-estudante de engenharia, cujo maior prazer era surfar nas ondas do Havaí. Em 25 de outubro de 2004, uma manhã cinzenta e fria, ele foi metido numa cela, em Lisboa, acusado de tráfico de drogas.
Naquele exato momento, descobriu-se adulto -alguém habituado à amplidão do mar estava num cubículo de oito metros quadrados.
Até então, era capaz de plantar maconha numa reserva florestal protegida, em Honolulu, sem ver perigo. Traficava no eixo Brasil-Estados Unidos, mas, no íntimo, achava que nunca daria em nada. É um típico caso de clichê fundo do poço: empanturrava-se de crack nas fétidas calçadas ao redor do Ceagesp, forjou o próprio sequestro, viajou para surfar quando a filha estava para nascer. Perguntei-lhe por que um indivíduo rico, com tantas possibilidades, vira traficante.

 

Depois de sair da cadeia, no ano passado, Jaques colocou sua história no papel, com o título de "Surfista, Ex-Drogado, Ex-Traficante" (editora Francisco Alves), livro lançado na semana passada.
Meu interesse estava aguçado por causa de conversas que tive com jovens de classe média, presos na Fundação Casa (ex-Febem) -estima-se, entre policiais, que está crescendo o envolvimento de jovens mais ricos na venda de drogas, o que se reflete nas estatísticas prisionais. Documentos oficiais indicam que 30% da ex-Febem vêm de famílias com maior poder aquisitivo.
Jaques Chulam reafirma as pistas que colhi nas entrevistas. "Há um tipo de jovem que não amadurece porque não aprendeu a ver limite nas coisas, sempre acha que, no fim, alguém acaba dando um jeito." Quando ele foi preso em Lisboa, já tinha passado dos 30 anos e se sentia impune -era o que psicólogos chamam de "adultescente".
Isso explica por que ele se drogava, bêbado, no banheiro do avião, apesar de ter quilos de cocaína na bagagem e ter de enfrentar a alfândega de Los Angeles. Voltava para a poltrona com o nariz branco, a ponto de ser advertido por uma irritada aeromoça. "Minha vida se tornou uma constante viagem. Um filme com um único personagem: eu".

 

A falta de limite é, em sua visão, estimulada com a convicção, no Brasil, de que rico não vai para a cadeia. Sempre haveria um jeito de contratar um bom advogado ou, mais fácil, subornar um policial -o episódio dos policiais que roubaram os ladrões que roubaram e mataram um educador do AfroReggae não ajuda a desestimular essa convicção.
"É como se fôssemos educados com a noção de que sempre é possível manipular. Quanto mais o jovem acreditar em seu poder de manipulação, pior." Depois de forjar seu próprio sequestro, Jaques foi internado numa clínica. "Manipulei os psicólogos. Em menos de uma semana, tive alta."

 

A incapacidade de ver o perigo e a sensação de impunidade se somam, para Jaques, ao status que a droga confere ao traficante. "Viramos o centro da festa, rodeados por um bando de meninos e meninas que passam a bajulá-lo." Chegou a organizar raves que, além de garantir seu status, davam-lhe a garantia de ser fornecedor de drogas. Ganhava, portanto, duplamente.
A situação degringola de vez quando o traficante se transforma em viciado -ou começa a traficar porque se viciou. "É inacreditável que, quando estamos na viagem, não percebemos que essa combinação só pode dar em cadeia ou cemitério, tantas são as bandeiras que damos."
Aprendeu o que significa se enganar com os amigos. "Nesse tipo de ambiente, os amigos são sombra. Só aparecem quando estamos brilhando."

 

Na terça-feira passada, quando conversamos, Jaques estava embarcando em mais uma viagem, dessa vez para a China, onde iria importar produtos marítimos numa feira internacional -quer fazer do mar seu principal negócio.
Sentia-se, brilhante, animado com o livro. Mas parece ter aprendido, com tantas manipulações e autoenganos, que vai ter de se esforçar pelo resto da vida para poder manter os "ex" do título do seu livro.
Exceto ser surfista.

 
PS - Um fato ajudou Jaques a escrever o livro. Na prisão, em Lisboa, ele, que não gostava de ler, ficou responsável pela biblioteca -o que lhe pareceu, diante das demais ofertas, o melhor emprego do mundo. A combinação de excesso de tempo com reflexões sobre sua vida, com suas sombras, estimulou a ideia de escrever um livro, que serviu como uma espécie de acerto de contas. Coloquei alguns trechos no meu site (www.dimenstein.com.br).

gdimen@uol.com.br

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