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Tô de mal
Calcula-se que até os seis anos de idade quase metade das crianças já teve atitudes preconceituosas, de acordo com a Anti-Defamation League (liga antidifamação), dos EUA
Educadores dizem o que pais podem fazer quando crianças são intolerantes e apresentam dificuldades para aceitar as diferenças
LAURA MATTOS
DA REVISTA DA FOLHA
"Estou comendo o Luís, estou comendo o Luís*!" O pequeno Luís, 5, ouvia a frase todas as vezes em que um coleguinha se deliciava com um
chocolate. Negro, o garoto era
associado à guloseima. Não
bastasse a piada sem graça,
Luís era rejeitado pelos grupos
de sua classe. Na hora das brincadeiras, não era chamado pela
turma e ficava sozinho. O caso
ocorreu em um colégio de
Campo Grande (MS).
É mais comum do que se
pensa. Crianças, mesmo as
mais novas, demonstram preconceito e dificuldade para
aceitar as diferenças. Além do
racismo, é vítima comum da
sinceridade cruel da meninada
qualquer um que apresente
uma característica "estranha",
como gordinhos ("baleia" e "saco de areia"), os que usam óculos ("quatro-olhos") e baixinhos ("tampinhas"). Sem falar
de portadores de deficiência,
gagos, tímidos etc. etc.
Nos EUA, o preconceito na
infância é tema de inúmeras
pesquisas. No Brasil, é raro um
estudo voltado à intolerância
entre os pequenos, apesar de
casos como o de Luís serem freqüentes, segundo pais, psicólogos, pediatras e professores entrevistados pela reportagem.
Calcula-se que até os seis
anos de idade quase metade das
crianças já teve atitudes preconceituosas, segundo a Anti-Defamation League (liga antidifamação), organização americana sem fins lucrativos.
A pedagoga Lucimar Rosa
Dias -de uma ONG que combate o racismo em escolas- foi
chamada a desenvolver um trabalho com a turma de Luís e ouviu de crianças de até cinco
anos construções como "preto
é feio", "preto tem sangue diferente", "negro é sujo", "cabelo
Bombril" e "cabelo Assolan".
Professora da PUC de Minas
Gerais, Rita Fazzi pesquisou
crianças em escolas públicas de
bairros de diferentes classes sociais em Belo Horizonte e
transformou sua tese no livro
"O Drama Racial de Crianças
Brasileiras" (editora Autêntica), mostrando que o racismo
se manifesta freqüentemente
no ambiente escolar.
A questão que mobiliza pais e
professores é: Por que o preconceito surge mesmo quando
pais não são preconceituosos?
De onde veio isso?
Estudos apontam que as
crianças adquirem consciência
das diferenças raciais, em média, dos três aos cinco anos, e,
com o tempo, passam a atribuir
julgamentos aos diferentes
grupos com base na observação
do meio em que vivem.
"Ela ainda não tem maturidade para saber o que é adequado ou não. Isso irá se firmar
com o passar dos anos e, por
volta da adolescência, ela será
mais capaz de controlar o que
deve ou não dizer e fazer. A espontaneidade infantil existe
para o bem e o mal", diz o psiquiatra Fernando Ramos, do
Departamento de Infância e
Adolescência da Sociedade
Brasileira de Psiquiatria.
Ele e outros estudiosos defendem a idéia de que o preconceito é sempre aprendido,
dentro ou fora da família. Por
isso, ainda que os pais não sejam preconceituosos, seus filhos podem surpreendê-los
com ofensas a alguém que
apresente alguma diferença.
Um prédio de classe média
da Vila Mariana (zona sul de
São Paulo) foi palco de um típico caso em que as crianças foram influenciadas pelo preconceito dos adultos. Letícia*, 10,
filha de uma lésbica, foi morar
no apartamento da namorada
da mãe nesse edifício. Boa parte dos vizinhos proibiu seus filhos de brincar com ela, e alguns chegaram a determinar às
crianças que nem cumprimentassem a garota. Resultado: Letícia fica isolada e é chamada de
sapatão pelo grupinho.
O preconceito pode ser
transmitido de forma sutil, como lembra o pediatra de Porto
Alegre Ricardo Halpern, presidente do Departamento Científico de Saúde Mental da Sociedade Brasileira de Pediatria.
"Mãe e filha estão de mãos dadas, por exemplo, e, ao cruzarem um homem negro, a mão
da criança é apertada com um
pouco mais de força. Outra situação: pai ou mãe se encontram com uma pessoa branca e
outra negra. Beijam a primeira
e não a segunda. É o suficiente
para que a antena parabólica da
criança capte os sinais."
Fora isso, não passa despercebido pelas crianças o fato de
negros normalmente ocuparem profissões subvalorizadas,
de as bonecas mais badaladas e
as princesas dos contos de fada
serem loiras e de olhos azuis e
de todas as modelos famosas
serem magérrimas.
Natural do crescimento
Mas não é unânime a idéia de
que o preconceito na infância
esteja necessária e exclusivamente ligado a um exemplo negativo dentro ou fora de casa.
Uma linha da psicanálise (kleiniana) relaciona atitudes preconceituosas nos pequenos
com estruturas emocionais
inatas, como o medo, a agressividade e a incapacidade de elaborar um conceito. O preconceito é visto como parte do
crescimento e só irá permanecer se encontrar eco no universo da criança.
"A criança pequena está
inundada por novos estímulos
e sensações que desconhece.
Vive momentos de angústia e
pode colocar isso para fora com
um xingamento ou um palavrão que escutaram de um
adulto", diz a psicanalista infantil Anne Lise Silveira Scappaticci, da Unifesp.
Como agir?
Como tudo relacionado à
educação dos filhos, não há
uma receita pronta para pais
que enfrentam uma situação de
preconceito com suas crianças
-vítimas ou "agressoras".
Diante da complexidade do
assunto, é preciso tentar entender ao máximo o que se passa
na cabecinha dos filhos. "Partir
direto para uma censura forte
pode não ser a solução, porque
a criança se intimida, e os pais
não conseguirão saber o que ela
está pensando. É importante
chamar para um conversa e investigar que questões a levaram
a ofender a outra pessoa", sugere o psiquiatra infantil Fernando Ramos.
"Bullying"
Muitas escolas hoje debatem
com os alunos a questão do
"bullying", prática repetitiva de
preconceito contra uma determinada criança. "É preciso estar muito atento, porque muitas vezes os xingamentos são
velados e longe dos olhos dos
educadores. Isso sem falar do
"bullying" praticado em sites de
relacionamento, como o Orkut", lembra o coordenador pedagógico Cesar Pazinatto.
O preconceito entre crianças
tem um forte potencial destrutivo para as vítimas, e pais e
professores devem agir, segundo o pediatra Halpern. E nem
sempre as vítimas chegarão em
casa contando aos pais de que
forma foram ofendidas.
Com os ofensores, é bom ser
compreensivo, o que não significa permissivo, segundo a psicanalista Anne Lise Scappaticci. "Compreender não quer dizer deixar para lá, mas acolher
aquela angústia e ensinar a
criança a pensar sobre aquilo."
E, que fique claro: mandar pedir desculpas nunca é demais.
* Nomes trocados
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