São Paulo, domingo, 25 de novembro de 2007

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Tô de mal

Calcula-se que até os seis anos de idade quase metade das crianças já teve atitudes preconceituosas, de acordo com a Anti-Defamation League (liga antidifamação), dos EUA

Educadores dizem o que pais podem fazer quando crianças são intolerantes e apresentam dificuldades para aceitar as diferenças

LAURA MATTOS
DA REVISTA DA FOLHA

"Estou comendo o Luís, estou comendo o Luís*!" O pequeno Luís, 5, ouvia a frase todas as vezes em que um coleguinha se deliciava com um chocolate. Negro, o garoto era associado à guloseima. Não bastasse a piada sem graça, Luís era rejeitado pelos grupos de sua classe. Na hora das brincadeiras, não era chamado pela turma e ficava sozinho. O caso ocorreu em um colégio de Campo Grande (MS).
É mais comum do que se pensa. Crianças, mesmo as mais novas, demonstram preconceito e dificuldade para aceitar as diferenças. Além do racismo, é vítima comum da sinceridade cruel da meninada qualquer um que apresente uma característica "estranha", como gordinhos ("baleia" e "saco de areia"), os que usam óculos ("quatro-olhos") e baixinhos ("tampinhas"). Sem falar de portadores de deficiência, gagos, tímidos etc. etc.
Nos EUA, o preconceito na infância é tema de inúmeras pesquisas. No Brasil, é raro um estudo voltado à intolerância entre os pequenos, apesar de casos como o de Luís serem freqüentes, segundo pais, psicólogos, pediatras e professores entrevistados pela reportagem.
Calcula-se que até os seis anos de idade quase metade das crianças já teve atitudes preconceituosas, segundo a Anti-Defamation League (liga antidifamação), organização americana sem fins lucrativos.
A pedagoga Lucimar Rosa Dias -de uma ONG que combate o racismo em escolas- foi chamada a desenvolver um trabalho com a turma de Luís e ouviu de crianças de até cinco anos construções como "preto é feio", "preto tem sangue diferente", "negro é sujo", "cabelo Bombril" e "cabelo Assolan".
Professora da PUC de Minas Gerais, Rita Fazzi pesquisou crianças em escolas públicas de bairros de diferentes classes sociais em Belo Horizonte e transformou sua tese no livro "O Drama Racial de Crianças Brasileiras" (editora Autêntica), mostrando que o racismo se manifesta freqüentemente no ambiente escolar.
A questão que mobiliza pais e professores é: Por que o preconceito surge mesmo quando pais não são preconceituosos?

De onde veio isso?
Estudos apontam que as crianças adquirem consciência das diferenças raciais, em média, dos três aos cinco anos, e, com o tempo, passam a atribuir julgamentos aos diferentes grupos com base na observação do meio em que vivem.
"Ela ainda não tem maturidade para saber o que é adequado ou não. Isso irá se firmar com o passar dos anos e, por volta da adolescência, ela será mais capaz de controlar o que deve ou não dizer e fazer. A espontaneidade infantil existe para o bem e o mal", diz o psiquiatra Fernando Ramos, do Departamento de Infância e Adolescência da Sociedade Brasileira de Psiquiatria.
Ele e outros estudiosos defendem a idéia de que o preconceito é sempre aprendido, dentro ou fora da família. Por isso, ainda que os pais não sejam preconceituosos, seus filhos podem surpreendê-los com ofensas a alguém que apresente alguma diferença.
Um prédio de classe média da Vila Mariana (zona sul de São Paulo) foi palco de um típico caso em que as crianças foram influenciadas pelo preconceito dos adultos. Letícia*, 10, filha de uma lésbica, foi morar no apartamento da namorada da mãe nesse edifício. Boa parte dos vizinhos proibiu seus filhos de brincar com ela, e alguns chegaram a determinar às crianças que nem cumprimentassem a garota. Resultado: Letícia fica isolada e é chamada de sapatão pelo grupinho.
O preconceito pode ser transmitido de forma sutil, como lembra o pediatra de Porto Alegre Ricardo Halpern, presidente do Departamento Científico de Saúde Mental da Sociedade Brasileira de Pediatria. "Mãe e filha estão de mãos dadas, por exemplo, e, ao cruzarem um homem negro, a mão da criança é apertada com um pouco mais de força. Outra situação: pai ou mãe se encontram com uma pessoa branca e outra negra. Beijam a primeira e não a segunda. É o suficiente para que a antena parabólica da criança capte os sinais."
Fora isso, não passa despercebido pelas crianças o fato de negros normalmente ocuparem profissões subvalorizadas, de as bonecas mais badaladas e as princesas dos contos de fada serem loiras e de olhos azuis e de todas as modelos famosas serem magérrimas.

Natural do crescimento
Mas não é unânime a idéia de que o preconceito na infância esteja necessária e exclusivamente ligado a um exemplo negativo dentro ou fora de casa. Uma linha da psicanálise (kleiniana) relaciona atitudes preconceituosas nos pequenos com estruturas emocionais inatas, como o medo, a agressividade e a incapacidade de elaborar um conceito. O preconceito é visto como parte do crescimento e só irá permanecer se encontrar eco no universo da criança.
"A criança pequena está inundada por novos estímulos e sensações que desconhece. Vive momentos de angústia e pode colocar isso para fora com um xingamento ou um palavrão que escutaram de um adulto", diz a psicanalista infantil Anne Lise Silveira Scappaticci, da Unifesp.

Como agir?
Como tudo relacionado à educação dos filhos, não há uma receita pronta para pais que enfrentam uma situação de preconceito com suas crianças -vítimas ou "agressoras".
Diante da complexidade do assunto, é preciso tentar entender ao máximo o que se passa na cabecinha dos filhos. "Partir direto para uma censura forte pode não ser a solução, porque a criança se intimida, e os pais não conseguirão saber o que ela está pensando. É importante chamar para um conversa e investigar que questões a levaram a ofender a outra pessoa", sugere o psiquiatra infantil Fernando Ramos.

"Bullying"
Muitas escolas hoje debatem com os alunos a questão do "bullying", prática repetitiva de preconceito contra uma determinada criança. "É preciso estar muito atento, porque muitas vezes os xingamentos são velados e longe dos olhos dos educadores. Isso sem falar do "bullying" praticado em sites de relacionamento, como o Orkut", lembra o coordenador pedagógico Cesar Pazinatto.
O preconceito entre crianças tem um forte potencial destrutivo para as vítimas, e pais e professores devem agir, segundo o pediatra Halpern. E nem sempre as vítimas chegarão em casa contando aos pais de que forma foram ofendidas.
Com os ofensores, é bom ser compreensivo, o que não significa permissivo, segundo a psicanalista Anne Lise Scappaticci. "Compreender não quer dizer deixar para lá, mas acolher aquela angústia e ensinar a criança a pensar sobre aquilo." E, que fique claro: mandar pedir desculpas nunca é demais.


* Nomes trocados


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