São Paulo, terça-feira, 25 de dezembro de 2001

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MARILENE FELINTO

Morrer na fila do Papai Noel

Era bem o frenesi do Natal, e era bem sob a "luminosidade cegante" do Nordeste que se aglomeravam as 60 mil pessoas à espera de um presente do governo do Estado de Sergipe. Era na capital, Aracaju.
Câmara Cascudo é quem afirma, em um de seus textos, que uma figura como a de Papai Noel teria tudo para não vingar em terras quentes como a nossa. Diz ele: "Com a felpuda e rubra indumentária de inverno polar, dificilmente se ajustará à normalidade resplandecente do verão brasileiro, dezembro ardente, de praias amplas, trajes ligeiros e luminosidade cegante."
Pois a figura "polar" não apenas vingou como serve a travestismos de vários tipos, inclusive à demagogia de certos governantes. E não é mais preciso lembrar o fato de que tudo aqui tem a influência "polar", isto é, do hemisfério norte e sua cultura fria, suas línguas etc.
É sintomático disso, aliás, que duas das crianças esmagadas e mortas durante a distribuição de presentes de Natal em Aracaju, no último dia 15, tivessem nomes estrangeirados: Weslaine, 10, e Christian, 3. A gente simplória e pobre deve imaginar que, ao dar nomes inglesados a seus filhos, aproximam-nos da riqueza e da sofisticação dos falantes daquele Primeiro Mundo que eles só alcançam via televisão.
Vi a cena num telejornal da TV a cabo (não sei se mostraram na TV aberta): imagens nítidas e dramáticas de crianças e adultos sendo imprensados, pisoteados e mortos por uma multidão no parque de exposições da cidade, local em que o governo do Estado (o governador é Albano Franco, do PSDB) "organizara" a distribuição de presentes.
Quatro pessoas morreram, dentre as quais três crianças. Houve 29 feridos e 500 crianças perdidas naquela manhã. Segundo o noticiário, a confusão aconteceu quando os presentes começaram a ser distribuídos, por volta das 6h. A multidão teria tentado invadir o local, o muro de proteção foi derrubado e a tragédia ganhou impulso.
Dentre as 60 mil pessoas que aguardavam para receber os presentes, muitas estavam acampadas ali desde o domingo anterior. Entre os mortos, Weslaine e Christian. De acordo com a Polícia Militar, cerca de 700 soldados faziam a segurança do evento, que é organizado há sete anos pelo governo. Segundo os organizadores, 35 mil presentes teriam sido distribuídos. Mas que tipo de presente é este? Para que serve? Para ajudar o "povo" ou para comprar o apoio do "povo"? Afinal, o "povo" não deve pensar outra coisa senão: "olha como o governador é bonzinho!"
É o tipo de conduta perversa que não vai mudar em curto prazo no Brasil, especialmente no Nordeste. Que se trocassem as bonecas e os carrinhos de plástico ordinário por uma boa escola, uma boa creche, um bom emprego para o pai das crianças -pai, este sim, que pudesse comprar o brinquedo de Natal para o filho.
Mas é claro que os governantes não vão fazer isso. Eles sabem que povo instruído não elege governador demagogo. Sergipe tem quase 25% de sua população analfabeta. Num universo de quase 1 milhão e 800 mil habitantes, isso significa 450 mil pessoas vivendo em aterradora escuridão.
Criança morrer na fila do Papai Noel só acontece mesmo por estas bandas. Para os meninos de Sergipe, o bom velhinho que, em palavras de Cascudo, "viaja cada fim de ano em um trenó puxado por renas douradas, na velocidade do pensamento, carregado de brinquedos" não passava de um temido papa-figo que os levou para sempre.

E-mail - mfelinto@uol.com.br


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