|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARILENE FELINTO
Morrer na fila do Papai Noel
Era bem o frenesi do Natal,
e era bem sob a "luminosidade cegante" do Nordeste que se
aglomeravam as 60 mil pessoas à
espera de um presente do governo
do Estado de Sergipe. Era na capital, Aracaju.
Câmara Cascudo é quem afirma, em um de seus textos, que
uma figura como a de Papai Noel
teria tudo para não vingar em
terras quentes como a nossa. Diz
ele: "Com a felpuda e rubra indumentária de inverno polar, dificilmente se ajustará à normalidade resplandecente do verão brasileiro, dezembro ardente, de
praias amplas, trajes ligeiros e luminosidade cegante."
Pois a figura "polar" não apenas vingou como serve a travestismos de vários tipos, inclusive à
demagogia de certos governantes.
E não é mais preciso lembrar o fato de que tudo aqui tem a influência "polar", isto é, do hemisfério
norte e sua cultura fria, suas línguas etc.
É sintomático disso, aliás, que
duas das crianças esmagadas e
mortas durante a distribuição de
presentes de Natal em Aracaju,
no último dia 15, tivessem nomes
estrangeirados: Weslaine, 10, e
Christian, 3. A gente simplória e
pobre deve imaginar que, ao dar
nomes inglesados a seus filhos,
aproximam-nos da riqueza e da
sofisticação dos falantes daquele
Primeiro Mundo que eles só alcançam via televisão.
Vi a cena num telejornal da TV
a cabo (não sei se mostraram na
TV aberta): imagens nítidas e
dramáticas de crianças e adultos
sendo imprensados, pisoteados e
mortos por uma multidão no parque de exposições da cidade, local
em que o governo do Estado (o
governador é Albano Franco, do
PSDB) "organizara" a distribuição de presentes.
Quatro pessoas morreram, dentre as quais três crianças. Houve
29 feridos e 500 crianças perdidas
naquela manhã. Segundo o noticiário, a confusão aconteceu
quando os presentes começaram
a ser distribuídos, por volta das
6h. A multidão teria tentado invadir o local, o muro de proteção
foi derrubado e a tragédia ganhou impulso.
Dentre as 60 mil pessoas que
aguardavam para receber os presentes, muitas estavam acampadas ali desde o domingo anterior.
Entre os mortos, Weslaine e
Christian. De acordo com a Polícia Militar, cerca de 700 soldados
faziam a segurança do evento,
que é organizado há sete anos pelo governo. Segundo os organizadores, 35 mil presentes teriam sido distribuídos. Mas que tipo de
presente é este? Para que serve?
Para ajudar o "povo" ou para
comprar o apoio do "povo"? Afinal, o "povo" não deve pensar outra coisa senão: "olha como o governador é bonzinho!"
É o tipo de conduta perversa
que não vai mudar em curto prazo no Brasil, especialmente no
Nordeste. Que se trocassem as bonecas e os carrinhos de plástico
ordinário por uma boa escola,
uma boa creche, um bom emprego para o pai das crianças -pai,
este sim, que pudesse comprar o
brinquedo de Natal para o filho.
Mas é claro que os governantes
não vão fazer isso. Eles sabem que
povo instruído não elege governador demagogo. Sergipe tem quase
25% de sua população analfabeta. Num universo de quase 1 milhão e 800 mil habitantes, isso significa 450 mil pessoas vivendo em
aterradora escuridão.
Criança morrer na fila do Papai
Noel só acontece mesmo por estas
bandas. Para os meninos de Sergipe, o bom velhinho que, em palavras de Cascudo, "viaja cada
fim de ano em um trenó puxado
por renas douradas, na velocidade do pensamento, carregado de
brinquedos" não passava de um
temido papa-figo que os levou para sempre.
E-mail - mfelinto@uol.com.br
Texto Anterior: Grande SP: Lotação despenca em ribanceira e deixa dois mortos e quinze feridos Próximo Texto: Há 50 anos Índice
|