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São Paulo, quinta-feira, 25 de dezembro de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

"Felicidade é brinquedo que não tem"

"Anoiteceu, o sino gemeu..." Quem não conhece esse e outros versos de "Boas Festas", pungente canção do genial Assis Valente? "Boas Festas" é daquelas músicas que 99% das pessoas conhecem. Dessas, porém, 99,99% não sabem o título da música nem o nome de seu autor.
Assis Valente nasceu no Recôncavo Baiano, onde nasceram artistas do quilate de Caetano Veloso, Jorge Portugal, Maria Bethânia e Roberto Mendes, entre outros. São de sua lavra obras-primas como "Fez Bobagem", "Camisa Listrada", "E o Mundo Não se Acabou", "Brasil Pandeiro" etc.
Vejamos o uso da forma verbal "tem" em "Boas Festas": "Papai Noel, vê se você tem / A felicidade pra você me dar / (...) Já faz tempo que eu pedi / Mas o meu Papai Noel não vem / Com certeza já morreu / Ou então felicidade / É brinquedo que não tem".
O sujeito da primeira ocorrência de "tem" é "você". Antes que alguém pergunte por que não é "Papai Noel", é bom dizer que esse termo é vocativo (ser a quem a palavra é dirigida). O sujeito do primeiro "tem" é mesmo "você", termo que "conjuga" o verbo.
E o sujeito da segunda ocorrência de "tem" ("Felicidade é brinquedo que não tem")? Será esse um daqueles casos em que o verbo "ter" é usado (sobretudo na linguagem informal) como impessoal, com o sentido de "existir", "haver" ("Tem gente na sala"; "Não tem brinquedo na loja")?
Não é não, caro leitor. Volte ao texto (e sobretudo ao contexto) e veja que há dois Papais Noéis. Um é o de todos; o outro, particular, é o do próprio emissor ("mas o meu Papai Noel não vem"). Pois é esse Papai Noel que "não vem", que, "com certeza, já morreu" e que não tem um brinquedo cujo nome é "felicidade".
Pois bem, terminada a "trégua" natalina, os vestibulares estarão de volta, e não será surpresa a presença em alguns deles de questões relativas ao verbo "ter", sobretudo no que diz respeito a seu emprego com o valor de "haver" ou "existir", comum não só na informalidade como também em vários registros literários de peso, entre os quais o antológico poema "No Meio do Caminho", de Drummond ("Tinha uma pedra..."), e a célebre canção "Roda Viva", de Chico Buarque ("Tem dias que a gente se sente...").
Na primeira fase de 2003, a partir da canção "Eu te Amo" (de Tom Jobim e Chico Buarque), a Fuvest abordou o problema ao contrário, numa questão cujo enunciado era este: "Neste texto, em que predomina a linguagem culta, ocorre também a seguinte marca da linguagem coloquial". A primeira alternativa do teste era esta: "Emprego de "hei" no lugar de "tenho" (em "Me conta agora como hei de partir')".
Que tal, caro vestibulando? "Hei de partir" é construção coloquial, enquanto "Tenho de partir" é formal? Certamente não. É preciso ter cuidado para não sair atrás do primeiro canto do galo. Os apressados vêem os pares "coloquial/formal" e "ter/haver" e vão logo vendo o que não existe.
Bem, por falar em Papai Noel, não resisto à tentação de lembrar por que o nosso "bom velhinho" tem esse nome. Nossos irmãos portugueses o chamam "Pai Natal"; os italianos, "Babbo Natale" (cuja tradução é "Pai Natal"); os franceses, "Père Noël" (cuja tradução é "Pai Natal"). E nós? Juntamos português ("Papai") com francês ("Noël", de que tiramos o trema). Chique, não? É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

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