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DANUZA LEÃO
Felicidade, só no passado e no futuro
É preciso tomar cuidado
com essa tal de felicidade, e já
começar sabendo que ela não é
um lugar onde se chega, mas por
onde se passa às vezes, por alguns
instantes -e, na maioria deles,
sem perceber.
É estranha, essa tal de felicidade; tão estranha que normalmente só nos referimos a ela como coisa do passado -ah, como eu era
feliz- ou do futuro -ah,
como vou ser feliz quando, se
etc. etc.
Tudo existe no presente: ter frio,
fome, sede, estar triste, alegre ou
sofrendo, menos ser feliz. Você já
ouviu alguém dizer "eu sou feliz"?
Você já se sentiu, em algum momento, uma pessoa completamente feliz? Mas quantas vezes
olhou para trás e disse -e ouviu- que era feliz e não sabia?
Pois é.
A felicidade é perversa; quando
chega, mesmo sem que se perceba,
a gente muda. Fica egoísta, não
presta atenção nos outros, no
mundo; nada interessa, a não ser
cuidar da própria vida. Mas nada
como um bom sofrimento para
fazer você olhar nos olhos de sua
empregada de anos e se dar conta
de que ela é gente; de que às vezes
tem uma dor de cabeça igualzinho à sua, só que não pode ficar
deitada no ar refrigerado tocando
a campainha de 15 em 15 minutos
e pedir um chazinho. E alguma
casa deixou de ter uma carne assada, arroz e uma farofinha na
mesa do jantar porque a empregada estava resfriada?
Pessoas muito felizes, além de
egoístas, correm o risco de perder
a curiosidade; afinal, se tudo está
tão bem, qual a razão para ler um
jornal, saber quais as novas descobertas da ciência, se as saias estão mais curtas ou mais longas?
Faz parte da felicidade não ter
grandes desejos nem grandes anseios -quando se é feliz, não se
precisa de mais nada, portanto,
não se sonha com mais nada.
Quando se quer e se deseja, se luta, se briga, se vive.
Estando tudo bem, o melhor é
ficar imóvel, rezando para que
nada mude, nem o mundo nem
as pessoas nem você própria. Portanto, pensando bem, a felicidade
é a ser evitada.
Por que razão você se cuida, faz
ginástica, mechas no cabelo, enche a casa de flores, compra um
vestido novo, uma passagem no
cartão de crédito, toma um uísque, se perfuma? Para ter a esperança de que aconteça alguma
coisa que vai fazer de você uma
pessoa mais feliz -começando
pelo amor, claro; mas se acha que
já é, então não faz mais nada, a
não ser inventar o que vai comer
no café da manhã, no almoço e
no jantar. Aliás, é uma grande
delícia acordar com bolo de chocolate e Coca-cola, no almoço
uma montanha de pastéis de
queijo e camarão com uma cerveja bem gelada, depois deitar numa rede, de preferência debaixo
de um coqueiro, e à noite partir
para um belo rosbife com um
monte de batatas fritas, sem pensar em nada -apenas comendo,
desfrutando desse que é um dos
grandes prazeres da vida: o paladar, ou falando mais francamente, a gula. Pois cuidado: a felicidade engorda.
Mas pensando bem, sua vida está razoavelmente em ordem, não
é mesmo? O trabalho vai bem, a
família numa relativa paz -dentro do possível, claro-, a vida
correndo mansa. Além disso, existem as esperanças: de que o Brasil
melhore, de que seja eleito um
Congresso mais razoável, de que
no próximo verão dê para passar
duas semanas na Bahia tomando
banho de mar e bebendo água de
coco: então, essas não são razões
suficientes para ser feliz? Então,
o que te impede de dizer, com
todas as letras e bem alto, "Eu sou
feliz"?
O que te impede, amiga, é a
memória. Se ela não existisse, todos poderíamos ser muito felizes,
ou mesmo um pouco felizes, mas
sem dor.
Aquela dor que te pega quando
você abre uma caixa cheia de
fotos de quando era criança,
de uma viagem, de amigos que
se perderam pela vida. Que inveja
de gente que olha para antigas
fotos e lembra das coisas sorrindo,
felizes. Como fazem? Como conseguem?
Só através da memória você
aprende, adquire sabedoria, experiência, cultura; sem ela não há
história, nem civilização, sem ela
os livros não existiriam.
Mas a memória é esse mistério
que torna tudo possível e só te impede de uma coisa: de ser feliz.
E-mail - danuza.leao@uol.com.br
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