São Paulo, domingo, 25 de dezembro de 2005

Texto Anterior | Índice

GILBERTO DIMENSTEIN

Um maravilhoso brinde no esgoto

Na segunda-feira passada, quase à meia-noite, eu tomava um Prosseco no convés de uma embarcação de três andares. Dos dois lados do rio, a paisagem, barulhenta, era composta pelas luzes ininterruptas dos caminhões e automóveis. Montes de lixo flutuavam pelas águas; garrafas de refrigerante se acumulavam nas margens ou nas bases dos viadutos. Não se via, no céu, uma única estrela. O odor de esgoto e óleo se misturavam levemente ao aroma do vinho, servido numa taça de plástico. Toda essa sujeira, porém, tornava aquele brinde ainda mais interessante.
Momentos antes de os garçons servirem a bebida, assistimos da embarcação a uma peça do grupo de Teatro da Vertigem, intitulada "BR-3", na qual os atores, para contar uma viagem pelo interior do Brasil, se espalhavam pelo convés, em lanchas e nos cenários, alguns deles feitos de lixo reciclado, nas margens do rio Tietê.
Nunca imaginei ver beleza naquele rio fétido e de águas negras de sujeira, de onde partiam indivíduos que, no passado, ajudaram a delimitar as fronteiras do Brasil e a descobrir riquezas -e não muito tempo atrás, ainda se disputavam alegres torneios de natação. Muito menos imaginaria que iria tomar, naquela paisagem, um vinho e, ainda por cima, com prazer.
Estava ali, naquele cheiro e imagens de atores fazendo do rio um palco, a essência de uma cidade. Daí que merecia mesmo um brinde.
Na minha retrospectiva sobre 2005, o fato social que considero mais importante, embora ainda pouco conhecido e estudado, é a queda acentuada do número de homicídios na cidade de São Paulo no geral e, em particular, em seus bairros mais degradados, como o Jardim Ângela, apontado, no passado, como a região mais violenta do mundo. Nunca se tinha visto, no país, uma queda tão rápida nas taxas de assassinato -o que se presta, neste ano eleitoral que se aproxima, como uma experiência a ser averiguada nacionalmente.
O fenômeno da redução das mortes só é explicado pelo "brinde no Tietê", símbolo de uma tentativa de revitalização. É exatamente o que está ocorrendo em São Paulo, degradada, violenta, suja, caótica, mas em que se processa, quase clandestinamente, uma resistência sem líderes, manifestos e partidos. É, de longe, a história mais interessante a ser observada na cidade.
Não adianta olhar apenas na superfície ou sentir o odor do rio; é preciso mergulhar mais fundo.
Nesse mergulho, o que se vê é a disseminação de associações e de lideranças comunitárias, a maioria delas de migrantes nordestinos, que pouco ou quase nunca aparecem na mídia. São atores que viabilizam projetos de segurança em parceria com os poderes municipais e estadual. Valorizam escolas públicas, ocupando-as nos finais de semana para atividades de complementação curricular, esportivas e culturais. São eles que demandam mais e melhores ações sociais e assistenciais, exigindo que não sejam articuladas e não se interrompam com mudanças de governo. Em muitos bairros, ocorrem mobilizações pela paz envolvendo alunos, professores, pais, comerciantes, educadores e religiosos.
Apesar de dispersas, fragmentadas e, muitas vezes, lentas, algumas políticas públicas, vamos reconhecer, têm ajudado o fortalecimento de bairros. Uma delas é a expansão do policiamento comunitário. Os programas de renda mínima vão atingindo as famílias mais miseráveis e estimulam a economia local. O capital social (a rede de relações de confiança entre indivíduos) se amplia com a abertura das escolas nos finais de semana e o uso de espaços (parques, praças, clubes, quadras esportivas) para programas de pós-escola.
Some a tudo isso a rede de ONGs, de voluntários e de projetos sociais das empresas, que, lentamente, vem se sofisticando para oferecer um serviço mais técnico, a partir de indicadores sistematicamente avaliados.
Todos esses fatores explicam, em maior ou menor grau, a revitalização de algumas comunidades, se refletindo em toda a cidade. Ninguém seria tolo de dizer que estamos bem, que a cidade está civilizada, que os alunos estão bem-educados ou que o cidadão conta com uma rede de proteção de saúde assegurada.
A regra é ainda a selvageria e a incompetência. Mas existe uma reação comunitária inusitada na história brasileira, como se mesclasse um pouco de beleza no esgoto -exatamente como os atores do rio Tietê.
P.S.- Os candidatos a presidente e a governador que não estudarem o que está acontecendo em bairros como Heliópolis, Paraisópolis ou Jardim Ângela simplesmente não estarão preparados para lançar propostas para redução da violência nem avançar em programas assistenciais.


Texto Anterior: Segurança: Depois da prisão de Robinho Pinga, polícia rastreia contas do traficante
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.