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O kit médico e a ineficiência das leis brasileiras
MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas
A facilidade com que o brasileiro burla a lei segue o exemplo de cima: das próprias leis
inadequadas, criadas por legisladores que parecem sofrer
de alguma atrofia da inteligência ou não ter a mínima visão das relações entre jurisprudência e sociedade.
A história da falsificação do
nome do motorista, no caso
dos pontos nas carteiras de habilitação decorrentes de multas de trânsito, é típica desse
vício brasileiro. A lei mal acabou de ser criada e já inventaram um jeito bem criativo de
infringi-la. O motorista infrator, para diminuir o número
de pontos acumulados em sua
carteira, recorre da multa, diz
que não foi ele quem estava ao
volante no momento da infração, dá o nome de outra pessoa
e pronto, livra-se da lei. Um escândalo a que a autoridade
competente tem respondido
com um pálido: "é impossível
detectar ou prevenir esse tipo
de fraude".
Agora, o kit médico: era lei
para trouxa. Equipamento
obrigatório pelo código de
trânsito desde 1º de janeiro,
acaba de ter sua obrigatoriedade suspensa em diversos Estados e cidades do país, entre
os quais São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Bahia, para citar os maiores.
Quer dizer: o cidadão consciencioso, cumpridor das leis,
que comprou seu kit por R$ 10
ou mesmo R$ 15, foi trouxa. E
quem é que vai devolver a ele o
dinheiro? Eu mesma comprei
um kit num posto de gasolina
(lugar suspeito, é bem verdade,
para a venda de um equipamento médico) por R$ 10. E fui
enganada duas vezes: a gaze
não era esterilizada, a tesoura
não cortava nada. Não devia
ter comprado.
O tal do kit virou objeto de
uma ridícula confusão legislativa. O próprio ministro da
Justiça já admite a possibilidade de suspender definitivamente a exigência do equipamento nos carros. Enquanto
isso, os R$ 10 de muita gente
foram para o espaço.
Apesar de o novo código de
trânsito ser um avanço inegável em matéria de legislação
no Brasil, não se pode negar
que falta ao Legislativo do país
noções mais aprofundadas de
jurisprudência histórica (estudo do desenvolvimento dos
princípios legais ao longo do
tempo, sempre enfatizando a
origem da lei nos costumes ou
na tradição, mais do que nas
regras aplicadas).
Faltam ao Legislativo noções
mais aprofundadas de jurisprudência sociológica (um
exame da relação entre regras
legais e o comportamento de
indivíduos, grupos ou instituições). Faltam ao Legislativo
noções mais aprofundadas de
jurisprudência funcional (uma
investigação da relação entre
as normas legais e as necessidades e os interesses sociais latentes). Por isso é que esse kit
médico não serve para nada.
Porque faltam ao Legislativo
noções mais aprofundadas de
realismo legal. Aprendi tudo
isso no dicionário. Os legisladores deviam aprender.
Mas o nosso Poder Legislativo, a Câmara dos Deputados
(esses homens que inventam as
leis), todos sabemos, não é das
instâncias que primam pela
inteligência ou pela erudição.
É apenas especialista na manipulação política das leis.
E-mailmfelinto@uol.com.br
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