São Paulo, terça, 26 de janeiro de 1999

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O kit médico e a ineficiência das leis brasileiras

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

A facilidade com que o brasileiro burla a lei segue o exemplo de cima: das próprias leis inadequadas, criadas por legisladores que parecem sofrer de alguma atrofia da inteligência ou não ter a mínima visão das relações entre jurisprudência e sociedade.
A história da falsificação do nome do motorista, no caso dos pontos nas carteiras de habilitação decorrentes de multas de trânsito, é típica desse vício brasileiro. A lei mal acabou de ser criada e já inventaram um jeito bem criativo de infringi-la. O motorista infrator, para diminuir o número de pontos acumulados em sua carteira, recorre da multa, diz que não foi ele quem estava ao volante no momento da infração, dá o nome de outra pessoa e pronto, livra-se da lei. Um escândalo a que a autoridade competente tem respondido com um pálido: "é impossível detectar ou prevenir esse tipo de fraude".
Agora, o kit médico: era lei para trouxa. Equipamento obrigatório pelo código de trânsito desde 1º de janeiro, acaba de ter sua obrigatoriedade suspensa em diversos Estados e cidades do país, entre os quais São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Bahia, para citar os maiores.
Quer dizer: o cidadão consciencioso, cumpridor das leis, que comprou seu kit por R$ 10 ou mesmo R$ 15, foi trouxa. E quem é que vai devolver a ele o dinheiro? Eu mesma comprei um kit num posto de gasolina (lugar suspeito, é bem verdade, para a venda de um equipamento médico) por R$ 10. E fui enganada duas vezes: a gaze não era esterilizada, a tesoura não cortava nada. Não devia ter comprado.
O tal do kit virou objeto de uma ridícula confusão legislativa. O próprio ministro da Justiça já admite a possibilidade de suspender definitivamente a exigência do equipamento nos carros. Enquanto isso, os R$ 10 de muita gente foram para o espaço.
Apesar de o novo código de trânsito ser um avanço inegável em matéria de legislação no Brasil, não se pode negar que falta ao Legislativo do país noções mais aprofundadas de jurisprudência histórica (estudo do desenvolvimento dos princípios legais ao longo do tempo, sempre enfatizando a origem da lei nos costumes ou na tradição, mais do que nas regras aplicadas).
Faltam ao Legislativo noções mais aprofundadas de jurisprudência sociológica (um exame da relação entre regras legais e o comportamento de indivíduos, grupos ou instituições). Faltam ao Legislativo noções mais aprofundadas de jurisprudência funcional (uma investigação da relação entre as normas legais e as necessidades e os interesses sociais latentes). Por isso é que esse kit médico não serve para nada. Porque faltam ao Legislativo noções mais aprofundadas de realismo legal. Aprendi tudo isso no dicionário. Os legisladores deviam aprender.
Mas o nosso Poder Legislativo, a Câmara dos Deputados (esses homens que inventam as leis), todos sabemos, não é das instâncias que primam pela inteligência ou pela erudição. É apenas especialista na manipulação política das leis.


E-mailmfelinto@uol.com.br




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