São Paulo, domingo, 26 de março de 2006

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GILBERTO DIMENSTEIN

Ser traficante é sinal de inteligência? Talvez

O Colégio Objetivo procurou, no ano passado, superdotados entre alunos da sétima série de 51 escolas da rede municipal da cidade de São Paulo. Os escolhidos ganhariam mensalidade gratuita, aulas no curso pré-vestibular, bolsa em dinheiro e ajuda extra para desenvolver suas aptidões. Depois de meses de seleção entre uma gigantesca fila de pretendentes, sobraram 11 vitoriosos.
Como em qualquer agrupamento humano existe uma porcentagem de indivíduos com aptidões acima da média (assim como de deprimidos e ansiosos), se aquela seleção fosse estendida para todas as sétimas séries da rede municipal, na qual existem cerca de 500 escolas, teria revelado, no mínimo, 50 superdotados. Estimulados para transformar seu potencial em alguma habilidade, a probabilidade é que se desenvolvessem acadêmica e profissionalmente. É óbvio.
Não é óbvio, porém, qual seria o resultado se, em vez de apoiados para avançar nos estudos, os integrantes desse grupo permanecessem em escolas de baixa qualidade, não conseguissem emprego e vivessem em comunidades miseráveis.
Provavelmente, muitos deles usariam sua inteligência e espírito empreendedor para liderar gangues, seqüestrar, assaltar ou traficar drogas. Fala-se muito que a criminalidade é conseqüência de uma série de combinações sociais, culturais e econômicas. Mas quase nunca se fala que ela também é o resultado perverso da inteligência.
 
Nunca vi nenhum teste de inteligência aplicado entre líderes de gangues, mas o que sempre me chamou a atenção, observando crianças e adolescentes envolvidos no crime, é uma visível esperteza e rapidez de raciocínio, apuradas na seleção "natural" da rua.
O chefe de gangue tem noções de táticas e estratégias que fariam dele um executivo de empresa, empresário ou governante. Trabalha-se muito, sob intenso estresse, com os mais variados riscos, o que exige foco, disciplina e habilidade de gestão de equipes.
Não estamos apenas desperdiçando talentos de possíveis futuros músicos, médicos, engenheiros, empresários, mas transformando-os em inimigos da sociedade, gente que nada constrói, só destrói. Ou seja, o custo social é dobrado.
Na semana passada, assistimos à mais contundente investigação já realizada sobre a violência que atinge crianças e adolescentes no Brasil, com a divulgação, no "Fantástico", das gravações feitas pelo rapper MV Bill e o produtor Celso Athayde sobre o tráfico de drogas. É o marco mais importante na cobertura jornalística sobre a delinqüência juvenil.
 
O envolvimento dos adolescentes no tráfico de drogas e seu extermínio ressaltam a mais grave armadilha social brasileira: os milhões de jovens sem perspectiva. É o preço mais alto de toda a nossa história de exclusão, de deficiência escolar e de baixo crescimento econômico. Segundo estatísticas oficiais, 27% dos jovens entre 15 e 24 anos não trabalham nem estudam em apenas oito regiões metropolitanas. Isso significa 1,7 milhão de desesperançados. Justamente nesse contexto alguns dos mais empreendedores e mais inteligentes serão recrutados pelas quadrilhas.
Na semana passada, foram divulgados estudos do Ministério da Educação e do IBGE dando pistas sobre alguns dos ingredientes que produzem essa desesperança. Apenas 11% das crianças estão em creche, os alunos de escolas pública têm aulas mais curtas e estudam em salas superlotadas. Em 2004, 15 em cada 100 alunos do ensino médio abandonaram a escola; isso representa 1,4 milhão de cidadãos condenados à baixa escolaridade.
 
Se em um ínfimo grupo de 51 escolas públicas encontramos 11 superdotados, quantos haveria num universo de 1,7 milhão de jovens que não trabalham nem estudam? Sempre vale repetir um magnífico ditado: se você acha que educação custa caro, tente calcular o preço da ignorância.
Um desses custos apareceu nos vídeos de MV Bill e Celso Athayde - dos 16 meninos acompanhados nessa investigação, 15 morreram e o outro está preso. Ou em cenas que não foram divulgadas, como a de uma menina de nove anos fazendo sexo oral num traficante para ganhar em troca cocaína.
 
P.S- Estou cada vez mais convencido de que o problema da violência é mescla da pobreza com a destruição de laços afetivos das crianças e dos jovens; essa destruição é o que os remete para o mundo da invisibilidade. Daí que o desajuste familiar é uma das bases da violência. Não iremos muito longe sem educar as famílias, oferecer atenção desde o momento em que a criança nasce (por isso é tão prejudicial o número baixo de matriculados na creche), transformar a escola em centro comunitário e garantir meios de expressão através das mais diversas formas. O próprio MV Bill é um exemplo: ele sabe que, não fosse a música, poderia ter sido mais um daqueles meninos assassinados que filmou. Nunca se produziu no país um plano consistente para evitar a delinqüência juvenil. Quantos filmes e livros terão de ser lançados para que se monte um plano articulado em todos os níveis para enfrentar nossa guerra civil? Lamento informar, mas só crescimento econômico, geração de empregos e mais repressão não resolverão, nem remotamente, essa guerra.

@ - gdimen@uol.com.br


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