São Paulo, segunda-feira, 26 de abril de 2010

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MOACYR SCLIAR

À espera do Rei


O rei com o qual os velhos aristocratas sonham é uma figura que tende mais para a fantasia do que a realidade

Nobres da Espanha criaram uma ONG com o objetivo de atender aristocratas idosos decadentes, que um dia foram ricos e perderam status social no país. A nova ONG, chamada Fundação Marquesa de Balboa para Anciãos Solitários Decadentes, surgiu graças à falecida marquesa Isabel de Borbón y Esteban de León, que deixou parte de sua fortuna para esta causa. No testamento, pediu aos amigos da alta sociedade que ajudassem aos nobres que perderam o padrão de vida e que são causa de vexame para a classe aristocrática. A ONG inclui em sua lista de amparo aristocratas decadentes que "morem sozinhos, ou em condições precárias, ou em asilos em mau estado".
Folha Online

AGORA que têm a subsistência garantida, os aristocratas decadentes sentem-se livres das aflições e incertezas do cotidiano.
Podem, portando, dedicar-se a coisas mais amenas. Todos os dias reunem-se numa ampla sala da fundação que os ajuda e ali ficam, tomando vinho e conversando. Nas conversas, inevitavelmente voltam ao passado que para eles sempre foi gratificante, um passado de luxo, de esplendor, de banquetes, de festas inesquecíveis: "Aqueles, sim, eram bons tempos". E há uma figura que evocam constantemente, como símbolo das glórias passadas: o rei.
Não é, diga-se desde logo, o monarca propriamente dito, aquele que, até hoje, faz parte das casas reais européias. Não é nem mesmo um rei do passado, Fernando de Castela, Felipe 2º, Carlos 5º, Alfonso 12º ou 13º. Sim, estes foram soberanos que, por várias razões políticas ou militares ou de outra natureza deixaram o nome inscrito nas páginas da História com H maiúsculo.
Mas o rei com o qual os velhos aristocratas sonham é uma outra figura, que tende mais para a fantasia do que a realidade. Um rei poderoso, muito mais poderoso do que qualquer outro. Este rei virá para mudar o mundo. Começará convocando os anciãos para com eles constituir uma nova corte, dotada de amplos poderes. Será o fim da permissividade, do deboche, do desrespeito. A insolência dos jovens terá limites.
A antiga moral ressurgirá, triunfante, e ai daqueles que não se comportarem dentro de seus rígidos parâmetros: o rei não hesitará em usar a força contra os contestadores. Nada de músicas imorais, de filmes imorais, de livros imorais. Contenção será a palavra de ordem. Quanto aos antigos aristocratas, serão tratados sempre com o respeito e com a reverência que merecem.
Mas não lhes falta motivo para inquietação. É que, nas suas reuniões, são sempre atendidos por uma moça chamada Maria, que lhes serve vinhos e doces. E esta Maria não é exatamente do tipo discreto. Moça exuberante, sempre muito maquiada, usa saias microscópicas e decotes abundantes. E ali reside o perigo. O que acontecerá se o rei, baseado no seu incomensurável poder, decidir que quer a Maria? O que acontecerá se ele passar a viver só com ela, só para ela? O que acontecerá se Maria, através do amante real, assumir controle sobre a corte?
Dúvida cruel. Dúvida deprimente, desanimadora. Os anciãos continuam esperando pelo rei. Mas não se importam se levar séculos para chegar.


Restart - Recomeçarescreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.

moacyr.scliar@uol.com.br


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