São Paulo, quinta-feira, 26 de maio de 2005

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PASQUALE CIPRO NETO

"46% da população só consegue..."

Há duas semanas, analisei uma questão do vestibular da ESPM, em que se pedia ao candidato que apontasse a frase em que havia uma "forma verbal não prevista pela norma culta". A questão tratava do verbo "adequar", que, como vimos, aparece como defectivo em alguns dicionários e gramáticas e como verbo de flexão completa em outros. O leitor Pércio de Moraes Branco, de Porto Alegre, escreveu para informar que me enganei em relação ao "Houaiss" (afirmei que o dicionário dá o verbo como completo). "A minha edição diz que ele é defectivo", disse o leitor, que tem metade da razão. E por que "metade"? Porque consultou a versão de papel. Na versão (eletrônica) disponível no UOL, o verbo aparece como completo. Como se vê, o caso é tão delicado que duas versões diferentes da mesma obra se contradizem. Vimos também que essa mesma contradição está presente em outra publicação, o ótimo minidicionário Caldas Aulete, lançado em 2004 (o verbo aparece como defectivo nas páginas iniciais, no capítulo "Paradigmas de Conjugação", e como completo no próprio verbete "adequar"). Mais do que depressa, o querido Paulo Geiger (editor da obra) me escreveu para afirmar que o meu atento radar foi implacável. Geiger informou que, na próxima edição da obra, vai trocar o exemplo presente no verbete (de "Usos que não se adequam à norma culta da língua" para "Usos que não se adequavam..."), "a menos que..." (prefiro omitir essa parte, em que Geiger me atribui importância muito maior do que a que tenho, se é que tenho alguma). Essas contradições mostram que, embora haja um certo consenso de que nos registros formais da língua o verbo é defectivo, o melhor mesmo é as bancas não elaborarem questões que abordem minudências desse jaez. Posto isso, vejamos outra questão do mesmo vestibular, em que se discutia a concordância do verbo com o sujeito formado por porcentagens. Uma das alternativas do teste era esta: "Ibope informa que 46% da população só consegue resolver problemas com apenas uma operação aritmética". Embora se note aqui e ali a opção pela concordância do verbo com o número percentual, qualquer que seja o seu especificador ("Apenas 60% do eleitorado compareceram"), a flexão adotada na frase do exame da ESPM ("46% da população só consegue resolver...") obedece ao critério adotado pela quase totalidade dos principais usuários desse tipo de construção, os grandes jornais e revistas do país. Alguns desses veículos de comunicação deixam claro isso em seus manuais de redação. Por esse critério, o verbo concorda com o especificador do número percentual: "Apenas 60% do eleitorado compareceu"; "Sabe-se que 99% da frota virou sucata". A opção pela concordância fixa com o número percentual pode gerar monstrinhos semelhantes a estes: "De acordo com essa pesquisa, 1% das mulheres ficou grávido depois de ingerir..."; "Os dados comprovam que 20% das mulheres entrevistadas estão contaminados...". Que tal? Ruim, não? Vale lembrar que, quando o número percentual é precedido de algum determinante ("os", "esses" etc.), o verbo concorda com esse determinante: "Esses 40% do eleitorado americano deixaram claro que não aceitam...". É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
@ - inculta@uol.com.br


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