São Paulo, domingo, 26 de julho de 1998

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GILBERTO DIMENSTEIN
Mentiras de fumaça

Dois professores de psiquiatria, estudiosos de drogas, resolveram fazer uma experiência com suas filhas de 8 e 12 anos, enviando-as a 70 bares e padarias de São Paulo.
Entregaram a cada uma delas dinheiro para comprar um maço de cigarros e testar até onde uma criança conseguiria transgredir a lei.
Ao final de três meses, constataram que elas foram 100% bem-sucedidas -ou seja, em nenhum momento ouviram uma negativa.
Professores da Universidade Federal de São Paulo, Ronaldo Laranjeira e Jair Mari fizeram suas filhas confirmar estatisticamente o que já sabiam: ao contrário das nações civilizadas, o Brasil ainda é um terreno fértil e ilimitado para a prosperidade do tabaco.
Graças, em boa parte, à omissão oficial, inteligência publicitária e, vamos reconhecer, uma dose de displicência da imprensa.


O ministro da Saúde, José Serra, informa que pretende transformar em medida provisória proibição de publicidade do cigarro antes das 23h.
É uma medida incompleta, mas um avanço. Incompleta porque deveria ser proibido usar truques para influenciar adolescentes a fumar, associando cigarro ao sucesso, liberdade, sexo e até vida saudável.
Vou reservar o elogio ao ministro, com ressalvas, no momento em que a proibição estiver funcionando; afinal, não foram poucas as tentativas, mas barradas pela força do lobby.
O jogo da indústria do fumo, regido pelas mais modernas técnicas de marketing, é dos mais sujos que se pode arquitetar: querem o adolescente, imerso numa fase de afirmação, testes de risco e limites, imaginando-se imortal.
"Já sabemos hoje que quanto mais cedo o indivíduo começa a fumar, mais difícil vai ser se libertar do vício", afirma o psiquiatra Ronaldo Laranjeira.


Uma vez instalado o vício, o poder de argumentos óbvios sobre o cigarro se reduz a fumaça. A melhor prova está onde menos deveria estar: dentro das faculdades de medicina.
Lá, afinal, qualquer contínuo estaria supostamente consciente dos malefícios do fumo. Então, vejamos.
Um grupo de psicólogos e psiquiatras investigou os hábitos de drogas de estudantes de dez faculdades de medicina de São Paulo, uma amostragem ampla. Nos últimos anos do curso, de cada cem deles, 40 fumam regularmente.
"É impressionante", afirma o psiquiatra Artur Guerra, da USP, coordenador da pesquisa.
Impressionante porque aquele público testemunha todos os dias nos hospitais o que lê nos livros: gente consumida pelo câncer, por exemplo.

Numa outra pesquisa, dessa vez na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, Ronaldo Laranjeira detectou uma curiosidade.
Os funcionários e estudantes fumavam menos do que os professores.
Se entre médicos encontramos uma incidência tão alta, imagine em indivíduos sem tanta informação e maturidade.
"A tendência da pessoa que fuma por mais de seis semanas é se viciar nos próximos 30 anos, pelo menos", sustenta Laranjeira, que há dois anos desenvolve um programa-piloto público para cortar o vício do cigarro; aliás, o programa, que implica uso de medicamentos e aconselhamento médico, tem funcionado em quatro de cada dez pacientes.


Com a pancadaria contra o cigarro nos países desenvolvidos, especialmente nos EUA, onde os direitos são mais respeitados, a indústria do fumo vai concentrar ainda mais esforços nas nações pobres.
É uma forma de compensar o prejuízo; e, claro, embora jamais reconhecido publicamente, vão tentar sempre e cada vez mais seduzir os adolescentes.
Não faltam milhões para a publicidade, patrocínio de shows e festivais. Ídolos da música não se sentem constrangidos, no Brasil, em associar sua imagem à do cigarro.
Até a próxima Bienal de Livros, em São Paulo, eles estão patrocinando.
Incrível que tanta gente influente permaneça tanto tempo inerte diante de um problema tão grave de Saúde pública.


Quem dá, de fato, um belo exemplo é a Califórnia.
Nenhum programa é tão eficaz na redução do consumo de cigarro.
Lá, é cobrada uma quantia em cada maço de cigarro. Com esse dinheiro, são bancados programas de prevenção e propaganda.


PS - Por falar em meios de comunicação, uma pesquisa feita pela agência de publicidade Propeg mostra que a TV, no Brasil, vive uma monumental crise de confiança.
Alguns resultados: 88% dizem que deveria ter menos filmes violentos; 87% reclamam do excesso de sexo nas telas e afirmam que os noticiários exageram na cobertura de crimes; 82% dizem que programa de auditório está virando "mundo cão".
É quase consenso (88%), segundo a pesquisa, que os pais deveriam controlar o tipo de programação assistida pelos filhos.


E-mail - gdimen@uol.com.br




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