São Paulo, Quinta-feira, 26 de Agosto de 1999
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INCULTA & BELA

Você e tu

PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha

Na semana passada, respondendo a um leitor, discuti a relação que se estabelece entre as pessoas do discurso e as pessoas gramaticais. Talvez seja interessante ver mais alguns detalhes da questão, sobretudo no que diz respeito à diversidade no emprego de "tu" e "você", no Brasil e em Portugal. Em coluna publicada no ano passado, citei a canção "Língua", de Caetano Veloso. Nela, o poeta faz bela análise da língua (ou das línguas) do Brasil, do nascimento ("Flor do Lácio") aos dias de hoje ("sambódromo"; "Fala, Mangueira"). "Você e tu, lhe amo", diz Caetano, referindo-se ao emprego e à posição do pronome "lhe", fato já discutido neste espaço, e ao uso de mais de uma forma de tratamento direto ("você" e "tu") no Brasil. Pois bem. O pronome "tu" é classificado como pessoal do caso reto ("eu, tu, ele..."). Pertence à segunda pessoa do discurso (a pessoa a quem se fala) e à segunda pessoa gramatical ("tu fazes", "tu dizes", "tu és"). "Você" aparece na lista dos pronomes de tratamento. Como tal, pede verbo na terceira pessoa ("você faz", "você diz", "você é"), apesar de ser da segunda pessoa do discurso. E de onde vem a palavra "você"? Vem de "Vossa Mercê", "antigo tratamento dado a pessoa de cerimônia", como o define o "Aurélio". "Vossa Mercê" passou a "vossemecê", que passou a "vosmecê", que passou a "você". "Você" vem de forma de tratamento respeitoso e assim se conserva em certas partes de Portugal, o que se confirma com uma andança por lá. O fato também é relatado no "Aurélio" e na "Nova Gramática do Português Contemporâneo", de Cunha e Cintra. Em Portugal, "você" e "tu" se alternam em mensagens de alcance público, como textos publicitários, apelos eleitorais etc. No Brasil, "você" transformou-se em forma de tratamento de igual para igual ou de superior para inferior. Seu uso, no entanto, não se verifica em todo o país. Em muitas regiões, usa-se "tu", e de formas diversas. No Rio de Janeiro, por exemplo, é comum que "tu" seja usado com verbo na terceira pessoa ("tu foi", "tu fez"). Já em Belém, é frequente o uso de "tu" com o verbo na segunda pessoa ("foste", "fizeste", com o pronome implícito). Talvez seja interessante que os professores de português expliquem tudo isso aos alunos antes de enfiar-lhes goela abaixo a questão da uniformidade de tratamento, exigida em muitos vestibulares e desejável em algumas variantes da língua. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail: inculta@uol.com.br


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