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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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Trajetória do criador da Cofap se confunde com a história do automóvel em São Paulo

Sonho sobre rodas nas ruas da cidade

LUIZ CAVERSAN
DA REPORTAGEM LOCAL

Desde criança, quando brincava pelas ruas do bairro do Brás, Abraham Kasinski sempre teve um sonho: fabricar um automóvel. Hoje, aos 86 anos, ele produz motocicletas e um veículo de três rodas que copiou de modelos muito comuns na Europa, sobretudo na Itália, e na Índia. Mas ele afirma que, sim, ainda vai fabricar o seu carro, "mas só se for para vender barato, uns R$ 8.000."
A se basear na história desse descendente de judeus russos que passou a vida, de uma maneira ou de outra, ligado a veículos automotores, em breve haverá um novo veículo brasileiro nas ruas. Ele não entra em detalhes, mas o projeto está avançado, e tem a referendá-lo uma vida de empreendimentos que se confundem com as últimas oito décadas de história da cidade de São Paulo.

Abraham Kasinski nasceu no dia 11 de julho de 1917, não na residência da família (esquina da avenida Celso Garcia com a rua Bresser), como era habitual naquela época. "Meu pai já era meio abonado, então nasci na maternidade do Tatuapé", diz ele.
Os primeiros anos da infância foram todos vividos pelas ruas do bairro, que ainda não ostentava a vocação para o comércio de confecções, que surgiria anos depois e permaneceria até hoje. "Havia algumas indústrias e muitas casas de famílias de classe média. Meu território era ali pela Bresser, pela rua Silva Telles, largo da Concórdia e rua Joli.
"Nesta última -recorda Kasinski- havia o cinema Brás Politheama, onde eu ia todos os domingos. Tinha de me virar, com o pouco dinheiro que meu pai me dava, para pagar o ingresso e ainda comprar um tostão de balas Passarinho. Mas valia a pena, principalmente por causa dos seriados, que demoravam seis meses, um ano para acabar e nos quais o mocinho nunca morria. Ele sempre levava o tiro no lado direito do ombro, nunca acertavam o coração."
Mas o "ponto" de Kasinski era mesmo no negócio do pai, a Loja do Leão (derivado do nome Leon), que funcionava junto à casa da família e que deu origem a toda uma linhagem de negócios ligado aos automóveis.
Ali ele começou a realizar seu sonho, usando rolamentos velhos ("A gente ainda chamava rolimã de roda alemã") para fazer e vender patinetes. "Não se pode negar que o patinete é um veículo com um cavalo de força", diz, rindo.
Conforme Kasinski, o negócio de seu pai não vendia acessórios. "Não era uma loja para enfeitar automóveis, mas sim de peças que gastavam e precisavam ser substituídas. Ou seja, tudo o que se referia a peça de reposição, a loja Leão tinha para vender. Era um negócio pioneiro. Meu pai foi, durante muito tempo, o maior vendedor de pneus de São Paulo."
Muitos dos pneus eram usados. Por isso, antes de chegarem aos olhos da clientela, passavam pelas mãos do pequeno Abraham para ficarem mais apresentáveis. "Eu colocava manchão, raspava as partes feias, essas coisas."
As peças e pneus, assim como todos os veículos da época, eram importados, e a boa relação do pai com os representantes das marcas de veículos que chegavam ao Brasil (Ford, GM, Chrysler etc) garantia, segundo ele, preços imbatíveis. "Meu pai comprava, por exemplo, todo o estoque dos pneus que estavam saindo de linha. Assim, ele conseguia, depois, vender muito mais barato do que os concorrentes."

Era um negócio de fato promissor, bastando, para confirmar isso, recordar que a frota de automóveis oficialmente registrados na cidade de São Paulo passaria de 1.700 unidades na década de 1910 para 31.200 veículos nos anos 40, chegando a 76 mil nos 50.
Antes desse "boom" automobilístico e de reforçar a paixão pelos automóveis, porém, Abraham Kasinski arrumou outro amor: o Corinthians. Nos anos 20 ele começou a frequentar as ainda incipientes dependências do clube, até hoje localizadas às margens do rio Tietê, mais para o leste da cidade, junto ao bairro do Tatuapé, no Parque São Jorge. "A primeira piscina do clube funcionava num cocho de madeira que ficava flutuando no Rio. Eu remei muito no Tietê e gostava demais de ir aos bailinhos promovidos no clube. O pior é que eu não sabia dançar. Mas, mesmo que levasse dez "tábuas", sempre acabava saindo com alguma menina", lembra.
Também nessa época ele foi estudar no Colégio do Carmo, de religiosos católicos, o que se chocava com suas origens judaicas. "Como eu era de outra religião, me obrigavam a assistir aula de catecismo de pé. E também era obrigado a ir à missa, na igreja Bom Jesus do Brás. Quando o padre me perguntava se eu tinha confessado, mentia e dizia que sim. Aos sábado, ia com a família à sinagoga da rua Bresser, que aliás, foi construída por meu pai."

O pioneirismo da autopeças Leão se repetiu quando o pai de Kasinski decidiu colocar, em 1924, uma bomba de gasolina na loja, uma inteira novidade, também passando a praticar preços abaixo do mercado. "A mangueira da bomba era muito comprida, então o que ele dava de desconto acabava ganhando na mangueira. Eu sei que vinha gente de longe, até de Higienópolis, para encher o tanque ali no Brás. Meu pai ganhou muito dinheiro lá, chegou a vender 1.000 litros de gasolina por dia, o que era uma enormidade."
O sucesso da bomba de gasolina foi tamanho que Leão Kasinski resolveu abrir uma outra, perto da rua Piratininga, sempre na Celso Garcia, fundando, segundo Kasinski, o primeiro posto de serviços da cidade.
"Eu fui trabalhar lá, ao mesmo tempo em que estudava na Escola de Comércio Álvares Penteado, no Largo São Francisco, onde, aliás, entrei falsificando um documento, porque não tinha a idade mínima exigida. Naquele tempo eu pegava o bonde perto da rua Rubino de Oliveira, onde havia a antiga cocheira dos burros, que depois virou garagem dos bondes elétricos. Eu ia pendurado no estribo e, quando o cobrador chegava, saltava e pegava o bonde de trás. Fazia isso até chegar no centro, para não pagar o bilhete, porque o salário que recebia do meu pai era muito pequeno."
O trabalho no posto trouxe problemas de saúde para Kasinski. Conforme relata, para dar conta do recado tinha de trabalhar à noite. Uma de suas obrigações era lavar os veículos, inclusive ônibus. Acabou pegando uma pneumonia e teve de passar uma temporada de tratamento em Atibaia. "Era para lá que pessoas com problemas no pulmão eram mandadas. Muito depois é que se passou a falar em Campos do Jordão..."
Até morrer em 1941, conta Kasinski, seu pai "ganhou muito dinheiro e se tornou muito conhecido na cidade, como o comerciante de produtos para automóvel que vendia mercadorias de qualidade a preços baixos."
Logo depois de Kasinski se formar, em 1933, a família deu um salto nos negócios, construindo um grande edifício entre a avenida São João e a alameda Barão de Limeira, próximo à avenida Duque de Caxias, numa região que se tornaria, anos depois, importante centro comercial de produtos automotivos. A loja Três Leões, que funcionava no andar térreo do prédio, tornara-se uma gigante no ramo das peças, e Kasinski fazia viagens frequentes aos Estados Unidos para negociar produtos que venderia para a manutenção dos carros que circulavam no Brasil.
"Havia uma turma que só andava com os carrões chiques. Eram Buicks, Fords, GMs. A gente se reunia no largo Paissandu, em frente ao Ponto Chic", recorda, referindo-se ao tradicional bar e restaurante da cidade, no qual foi inventado o sanduíche bauru.
"Havia um ponto de táxi ali em que os motoristas eram rufiões da prostituição de luxo da rua Amador Bueno, onde as mulheres falavam com sotaque francês."
Com os negócios e a sociedade com o irmão Bernardo à toda, já casado e morando em Pinheiros, próximo à avenida Rebouças, Kasinski deu mais um passo em direção ao seu sonho de construir um carro: decidiu montar uma indústria de autopeças. Em vez de importar, copiar os originais e fazer por aqui mesmo as peças de reposição.
Foi assim que nasceu, em 1950, a Companhia Fabricadora de Peças, a Cofap, marca que pertence à história da indústria de São Paulo e do Brasil -ficou conhecida com o slogan "é Cofap, é de confiança", que foi usada por décadas, e pela propaganda de amortecedores que tinha como personagem um cachorrinho basset.
Após pesquisar a demanda, comprar as máquinas e montar a equipe, Kasinski pôs a Cofap para operar três anos depois, produzindo componentes de motor. Pouco tempo à frente, tinha na linha de montagem peças para todas as marcas de carros em circulação no Brasil, inclusive, e principalmente, os amortecedores que fizeram a fama da marca.
Paralelamente a isso, as lojas Três Leões também prosperavam. Além da unidade original do Brás e aquela instalada no prédio da São João, surgiram outras em Pinheiros, Lapa, no Rio, em Fortaleza e em Recife.
Exceto por contratempos financeiros no final dos anos 50, foram praticamente 40 anos de sucesso na Cofap, sobretudo a partir da instalação da indústria automobilística no país. "De uma hora para outra passamos a fornecer 1.000 blocos de motor por dia para a Volkswagem. Tivemos que nos adaptar rapidamente, do padrão americano, no qual tudo era medido em polegadas, para o europeu, baseado em centímetros. Eu não tinha idéia, então, de quanto iríamos crescer. Como podia imaginar que a Volks poderia fazer dois milhões de automóveis e que a Mercedes iria produzir tantos caminhões?"
Cresceu, sim, e muito: a Cofap chegou a ter nada menos que 18 fábricas, inclusive na Argentina, e cerca de 35 mil funcionários.
Enquanto exercia o papel de industrial de sucesso, Kasinski dedicou-se também a outras paixões: o teatro e a pintura. "Eu sempre gostei tanto de teatro que até fazia parte de claque, só para estar lá todo dia. Adorava ir aos teatros Boa Vista, ao Paramount e ao TBC para aplaudir os espetáculos", afirma.
Quanto à pintura, acabou se tornando um "pequeno" colecionador. "Não tenho muita coisa não. Apenas um quadro de Chagall, três de Portinari, 10 de Di Cavalcanti, cinco de Cícero Dias e alguma coisa dos mexicanos Siqueiros, Orozco e Rivera."
Depois de se desfazer do grupo de lojas Três Leões, vendido ao conglomerado francês Presunic, que encerrou os negócios, Kasinski afirma que foi obrigado, há sete anos, a também vender a Cofap por desavenças. "Eu não aguentava mais", diz.
"Acabei vendendo a Cofap no auge. Naquele ano, 1996, tivemos US$ 1 bilhão de faturamento. Fui muito burro ao vender...", afirma.
E, ainda em suas palavras, continua "burro, vaidoso e pretensioso", porque, em vez de se aposentar e "ir passear na Europa", acabou montando, em 98, outro negócio para fabricar motocicletas e motonetas. Já participa de fatia expressiva no mercado de duas rodas e fabrica mensalmente pelo menos 300 veículos de três rodas, copiado de modelo italiano da marca Piaggio. "Sou um copiador emérito, graças a Deus", diz.
"E o pior -afirma na ampla sala de seu escritório da avenida Pacaembu- é que não abandonei o sonho de fabricar um carro, um carro barato, de cerca de R$ 8.000. Sabe por que eu sonho? Porque quem não sonha não olha para a frente, não tem idéias avançadas."
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