São Paulo, segunda-feira, 26 de outubro de 2009

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MOACYR SCLIAR

A história na laxa de lixo


Ele não estava interessado em sustento; interessavam-lhe os enigmas do passado, e era isso o que queria estudar


 

O concurso público para a seleção de garis para a cidade do Rio atraiu 45 candidatos com doutorado, 22 com mestrado e 1.026 com nível superior completo, segundo a Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana). Cotidiano, 22 de outubro de 2009

HISTÓRIA foi uma coisa que o atraiu desde criança. O pai, descendente de uma família antiga, tradicional (e arruinada), guardava uma infinidade de cartas, de documentos, de gravuras, de fotos, coisas que praticamente davam testemunho da trajetória do Brasil e que ele mostrava ao filho com melancólico orgulho: "Este aqui é o meu tataravô conversando com o Imperador... Esta aqui é minha bisavó num jantar no Palácio do Catete..." Muito cedo, ele estava lendo sobre o tema; e, na hora do vestibular, não hesitou: fez história. A mãe, mulher prática e sofrida, ainda lhe advertiu: "Meu filho, história é muito bonito, mas não sustenta ninguém".
Ele, contudo, não estava interessado em sustento; interessavam-lhe os enigmas do passado, e era isso que queria estudar.
Foi um aluno brilhante, e, por sugestão dos professores, fez mestrado e depois doutorado no exterior, e ainda um pós-doutorado. Os anos foram passando, anos de estudo e de pesquisa; os cabelos começaram a ficar grisalhos e ele simplesmente não conseguia arranjar um emprego decente, um emprego que lhe garantisse um salário razoável. Tinha uma namorada que amava e bem que gostaria de casar e constituir família, mas onde poderia arranjar os recursos para isso?
Foi então que leu no jornal a notícia do concurso público para garis. O que lhe chamou a atenção foi o salário, muito maior do que aqueles que já lhe tinham sido ofertados. Depois de uma noite de insônia, decidiu: inscreveu-se na prova. No dia marcado, lá estava ele. Encontrou muitos conhecidos, entre eles dois colegas do mestrado e um do doutorado.
Para quem, como ele, tinha uma vasta cultura, a prova não era difícil. Foi aprovado e apresentou-se para trabalhar. O chefe do setor ficou constrangido; perguntou se não seria melhor encaminhá-lo para um serviço burocrático. Sua resposta foi categórica: tinha se inscrito em um concurso para gari e como gari trabalharia.
Era um trabalho pesado, como logo descobriu. Horas percorrendo as ruas, recolhendo sacos de lixo e jogando-os no caminhão. Para quem, como ele, tivera uma vida absolutamente sedentária, aquilo era um desafio. Que acabou resultando num acontecimento inesperado.
Uma noite, ao recolher o lixo de um prédio, encontrou um grande e pesado saco plástico. Obviamente, continha livros, e ele, intrigado, abriu-o.
Eram livros, sim. Livros de história, alguns clássicos, alguns muito raros. Por alguns instantes, hesitou: afinal, e por um motivo que não estava claro (desilusão?), alguém tinha rotulado aquelas obras como lixo, e, portanto, ele deveria jogá-las no caminhão.
Mas optou por guardar os livros. Livros são história. E ele continua acreditando na história, que nos dá lições inclusive através do lixo. Quem sabe um dia, inspirado por essa constatação, escreverá uma obra monumental sobre o lixo na história do mundo?
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.

moacyr.scliar@uol.com.br


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