São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2006

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DANUZA LEÃO

Os vícios

Essa história de que a vida não deve ser sempre igual, que queremos o inesperado, é meio conversa fiada

EM QUEM a gente pensa, quando ouve falar que alguém é viciado? Só nos drogados, nos fumantes e nos alcoólatras, o que é uma injustiça. Somos todos viciados em alguma coisa, aliás, em várias. Quer ver só?
Você sai de casa para ir ao supermercado, mas só vai àquele em que está habituada (viciada), mesmo que existam outros três bem pertinho. E para chegar lá, segue sempre pelas mesmas calçadas, olhando as mesmas vitrines, atravessando a rua no mesmo lugar. E isso não é um vício?
O telejornal que se vê todos os dias, sempre o mesmo, a mulher que tem aquele dia certo de fazer as unhas, a mania de comer pipoca no cinema, tudo é vício, e não conheço quem não tenha o seu. Os seus, aliás.
Cachorros e gatos também têm direito a seus vícios: eles se deitam no mesmo lugar, dormem às mesmas horas e te procuram para receber carinho sempre da mesma maneira. Passarinhos talvez não tenham nenhum, mas esses são seres incompreensíveis. Se o seu bife passou do ponto, você reclama, a bebida é sempre a mesma, e essa história de dizer que a vida não deve ser sempre igual, que odiamos a rotina, que queremos a surpresa, o inesperado, é meio conversa fiada. Estão aí os Natais que não nos deixam mentir, as festas de fim de ano, os Carnavais, os aniversários, as férias tiradas sempre no mesmo mês; é sempre igual, tudo se repete, porque é assim que queremos que seja. É bom ter um vício; a vida fica mais previsível, mais segura. Seu café da manhã é sempre igual ou você gostaria que fosse cada dia de um jeito? Pois é.
E tem também as amizades; aquele amigo com quem você come feijoada aos sábados, aquele outro com quem vai ao futebol, o casal com quem vai à praia nos fins de semana de sol, sempre no mesmo lugar, a cervejinha, o amor que todo mundo procura e alguns encontram. Por isso ficamos tão sem rumo quando acontece um feriado no meio da semana, que nos deixa sem saber o que fazer da vida.
Nós todos, viciados, repetimos nossos procedimentos porque é mais seguro saber o que podemos esperar das pessoas, dos lugares, das férias; mas que limita as possibilidades, lá isso limita. Se você trocasse de praia, poderia talvez encontrar aquele namorado que procura tanto, uma amiga que não vê há séculos, daí partir para fazer alguma coisa inteiramente nova, que poderia te fazer muito feliz; mas está tão bom assim, o barraqueiro que te aluga a cadeirinha já te conhece, até te chama pelo nome, pra que mudar se está tudo bem do jeito que está?
E tem o amor; o amor que nos faz querer aquela pessoa acima de todas as outras, que sabe de tudo que você gosta, de que jeito você gosta, aquela que se enrosca em você no sofá sempre do mesmo jeito, que te entende sem você precisar falar, que você também entende, que está sempre por perto quando você precisa, e que às vezes te leva à loucura com as cenas de ciúme, as reclamações porque você se atrasou, com suas manias, aquela pessoa que você não agüenta, às vezes até te maltrata, mas que não consegue largar.
Porque ela se transformou em vício, e o amor é o vicio que se tem por alguém.

danuza.leao@uol.com.br


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