|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MOACYR SCLIAR
O carrinho ciumento
Tão logo a viu, apaixonou-se perdidamente. Porque era linda, ela. Alta, loira, olhos verdes, corpo perfeito...
|
Carrinho de supermercado inteligente
está destinado a se transformar em arma
da luta contra a obesidade. Especialistas
em tecnologia criaram um carrinho que
alertará o cliente do supermercado assim que for colocado nele algum produto
rico em gordura, açúcar ou sal. O carrinho possui uma tela interativa na qual os
códigos de barras desses produtos, uma
vez escaneados, ativarão uma luz vermelha de aviso. Quando o cliente introduzir
seu "cartão de fidelidade" no supermercado onde faz normalmente suas compras, o carrinho "saberá" imediatamente se ele é solteiro, casado e quantas vezes faz compras por semana. Além disso,
saberá levar o cliente às prateleiras que
estão mais de acordo com suas preferências e necessidades. Folha Online
ELE FOI DOS PRIMEIROS a aderir
ao carrinho inteligente, e isto
por várias razões. Solteirão,
fazia ele próprio suas compras no
supermercado, tarefa para a qual tinha pouco tempo e paciência: consultar rótulos e preços era coisa que
detestava.
Mas precisava fazê-lo, porque (e
esta era a segunda razão pela qual
aderiu ao carrinho) estava com excesso de peso, por causa, naturalmente, da dieta errada. Por último,
era fã da tecnologia -trabalhava
com informática-, e o carrinho seria para ele uma espécie de alma gêmea.
O carrinho logo passou a fazer
parte de sua vida. Detinha-se exatamente nas prateleiras em que estavam os produtos de que ele gostava
mais, e que eram também os mais
sadios. Além disto, e graças a um
programa introduzido pela gerência
do estabelecimento, o carrinho avisava-o da proximidade de um amigo
ou de um companheiro de trabalho,
acendendo uma luzinha verde, proporcionando amáveis encontros.
Com o que ele começou a freqüentar
cada vez mais o supermercado. Era
uma espécie de lar para ele.
Foi assim que encontrou a mulher
de seus sonhos. Ela tinha mudado
recentemente para o bairro, de modo que não a conhecia. Mas tão logo
a viu, apaixonou-se perdidamente.
Porque era linda, ela. Alta, loira,
olhos verdes, corpo perfeito... Divina, simplesmente divina.
Problema: ele era tímido. Por viver só, não tinha muita prática em
abordar moças. Finalmente, criou
coragem e, um dia em que a viu parada junto ao caixa, foi até lá, com o
carrinho.
E aí aconteceu uma coisa surpreendente. A luz vermelha começou a piscar furiosamente ao mesmo
tempo em que uma espécie de sirena, de cuja existência ele nem sabia,
soava insistente. Uma advertência
em tudo semelhante àquela que o
carrinho fazia diante de alimentos
muito calóricos, mas de intensidade
bem maior.
Coisa que chamou a atenção da
moça. Sorrindo, disse que o carrinho
deveria estar estragado e sugeriu
que ele o abandonasse num canto.
Saíram juntos do supermercado e
foram tomar um café. Passaram a
noite juntos, e foi maravilhoso. Mas,
no dia seguinte, quando se encontraram no supermercado, o carrinho voltou a fazer escândalo. De novo teve de abandoná-lo.
Vivem juntos agora, o rapaz e a
moça. Ele não vai mais ao supermercado. Por causa do carrinho, claro.
Que lá deve estar, doente de ciúme
eletrônico. Um dia o esperará na saída do prédio para se jogar sobre ele e
atropelá-lo. Carrinhos ciumentos
são um perigo.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
Texto Anterior: Presos ficam em caminhão em dia de visita Próximo Texto: Consumo: Consumidora reclama de letras minúsculas em promoção Índice
|