São Paulo, segunda-feira, 26 de novembro de 2007

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MOACYR SCLIAR

O carrinho ciumento


Tão logo a viu, apaixonou-se perdidamente. Porque era linda, ela. Alta, loira, olhos verdes, corpo perfeito...

 Carrinho de supermercado inteligente está destinado a se transformar em arma da luta contra a obesidade. Especialistas em tecnologia criaram um carrinho que alertará o cliente do supermercado assim que for colocado nele algum produto rico em gordura, açúcar ou sal. O carrinho possui uma tela interativa na qual os códigos de barras desses produtos, uma vez escaneados, ativarão uma luz vermelha de aviso. Quando o cliente introduzir seu "cartão de fidelidade" no supermercado onde faz normalmente suas compras, o carrinho "saberá" imediatamente se ele é solteiro, casado e quantas vezes faz compras por semana. Além disso, saberá levar o cliente às prateleiras que estão mais de acordo com suas preferências e necessidades. Folha Online

ELE FOI DOS PRIMEIROS a aderir ao carrinho inteligente, e isto por várias razões. Solteirão, fazia ele próprio suas compras no supermercado, tarefa para a qual tinha pouco tempo e paciência: consultar rótulos e preços era coisa que detestava.
Mas precisava fazê-lo, porque (e esta era a segunda razão pela qual aderiu ao carrinho) estava com excesso de peso, por causa, naturalmente, da dieta errada. Por último, era fã da tecnologia -trabalhava com informática-, e o carrinho seria para ele uma espécie de alma gêmea.
O carrinho logo passou a fazer parte de sua vida. Detinha-se exatamente nas prateleiras em que estavam os produtos de que ele gostava mais, e que eram também os mais sadios. Além disto, e graças a um programa introduzido pela gerência do estabelecimento, o carrinho avisava-o da proximidade de um amigo ou de um companheiro de trabalho, acendendo uma luzinha verde, proporcionando amáveis encontros. Com o que ele começou a freqüentar cada vez mais o supermercado. Era uma espécie de lar para ele.
Foi assim que encontrou a mulher de seus sonhos. Ela tinha mudado recentemente para o bairro, de modo que não a conhecia. Mas tão logo a viu, apaixonou-se perdidamente. Porque era linda, ela. Alta, loira, olhos verdes, corpo perfeito... Divina, simplesmente divina. Problema: ele era tímido. Por viver só, não tinha muita prática em abordar moças. Finalmente, criou coragem e, um dia em que a viu parada junto ao caixa, foi até lá, com o carrinho.
E aí aconteceu uma coisa surpreendente. A luz vermelha começou a piscar furiosamente ao mesmo tempo em que uma espécie de sirena, de cuja existência ele nem sabia, soava insistente. Uma advertência em tudo semelhante àquela que o carrinho fazia diante de alimentos muito calóricos, mas de intensidade bem maior.
Coisa que chamou a atenção da moça. Sorrindo, disse que o carrinho deveria estar estragado e sugeriu que ele o abandonasse num canto. Saíram juntos do supermercado e foram tomar um café. Passaram a noite juntos, e foi maravilhoso. Mas, no dia seguinte, quando se encontraram no supermercado, o carrinho voltou a fazer escândalo. De novo teve de abandoná-lo.
Vivem juntos agora, o rapaz e a moça. Ele não vai mais ao supermercado. Por causa do carrinho, claro. Que lá deve estar, doente de ciúme eletrônico. Um dia o esperará na saída do prédio para se jogar sobre ele e atropelá-lo. Carrinhos ciumentos são um perigo.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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