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MARILENE FELINTO
Roberto Carlos, um triste iê-iê-iê
É Jesus Cristo ou Roberto
Carlos? Uma imagem se mistura à outra, a cabeleira comprida do cantor lembra os cabelos
longos do retrato mais difundido
de Cristo. E como Roberto vive
cantando o santo, também ele parece canonizar-se, entrar para a
galeria dos sagrados.
Tudo contribui para reforçar essa imagem. No show do cantor
para a TV Globo, na quinta-feira,
tudo era branco. O ídolo sofrido
vestia branco, o piano era branco,
sobre um palco branco -em fundo azul, de céu estrelado.
Era Roberto entrando no céu,
experimentando o doloroso calvário a que a perda da mulher
-que morreu de câncer em novembro de 99- o conduziu. O
branco é a cor da "passagem" nos
rituais de iniciação, simboliza as
mudanças da existência, a morte
e o renascimento.
Era Roberto renascendo "como
Fênix", um radialista de São Paulo comparou, comentando a volta
do cantor aos palcos depois de um
ano de recolhimento. Na mitologia, Fênix é uma ave fabulosa que
durava muitos séculos e que,
queimada, renascia das cinzas.
O fato é que o lançamento de
seu novo CD "Amor Sem Limite",
dedicado à mulher, vem elevando
Roberto à categoria de não-humano -um santo, um mito.
E como a exaltação excessiva do
ídolo pop atinge seu ápice todo
Natal -mais ainda neste, já que
no anterior não houve show natalino, de novo por conta da morte
do "grande amor" de sua vida,
como diz a canção-, esse Roberto Carlos grisalho se transforma
no próprio bom velhinho, o Papai
Noel das nossas mães e avós.
O epíteto (e título desta coluna)
foi uma amiga que sugeriu. "Para
minha sogra, é padre Marcelo na
Terra e Roberto Carlos também",
ela contou, confirmando a associação da imagem do cantor com
certa religiosidade pop. O bom velhinho, que insiste em manter no
comprimento do cabelo o último
fio a ligá-lo à juventude ou à "Jovem Guarda".
São 2 milhões de discos de Roberto Carlos chegando às lojas
neste fim de ano, a notícia relata.
Metade é do novo CD. O restante
se divide entre os 42 títulos que o
cantor lançou ao longo da carreira. Entre eles, os clássicos "Em
Ritmo de Aventura" e "Detalhes".
Está claro que o eterno compositor de "Detalhes" é menos bom
poeta e cantor do que uma consistente criação da mídia a atravessar os tempos. Afinal, a câmera
da Globo procurava a qualquer
custo uma lágrima no olhos da
platéia global que assistia ao
show da semana passada.
Uma lágrima, pelo amor de
Deus, que rolasse dos olhos do galã amanhecido (do "pão", como
se dizia dos homens bonitos na
época da Jovem Guarda) Toni
Ramos ou no olho de Carolina
Dieckman, personagem cancerosa na ficção da novela.
Há algo de patético nesse apego
ao passado, nessa insistência em
se manter eterno. Nem mesmo a
crítica tem coragem de dizer que
Roberto Carlos é kitsch, brega.
A mim, pessoalmente, o cantor
lembra um triste iê-iê-iê -a vida
nos anos 60 em Recife, vida difícil,
de natais vazios, quando o "bom
velhinho" nunca vinha. Eu era
menina pequena quando minhas
tias e vizinhas, fãs incondicionais
do "negro gato", nos levaram à
porta do hotel Boa Viagem, o
mais luxuoso da cidade na época,
para ver o ídolo chegar.
Era Nordeste, sol a pino, e eu
-que cresceria sem ídolos e
achava minhas tias estranhas- ,
eu pensei que Roberto Carlos ia
derreter. Mas ele resiste.
E-mail - mfelinto@uol.com.br
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