São Paulo, terça-feira, 26 de dezembro de 2000

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MARILENE FELINTO

Roberto Carlos, um triste iê-iê-iê

É Jesus Cristo ou Roberto Carlos? Uma imagem se mistura à outra, a cabeleira comprida do cantor lembra os cabelos longos do retrato mais difundido de Cristo. E como Roberto vive cantando o santo, também ele parece canonizar-se, entrar para a galeria dos sagrados.
Tudo contribui para reforçar essa imagem. No show do cantor para a TV Globo, na quinta-feira, tudo era branco. O ídolo sofrido vestia branco, o piano era branco, sobre um palco branco -em fundo azul, de céu estrelado.
Era Roberto entrando no céu, experimentando o doloroso calvário a que a perda da mulher -que morreu de câncer em novembro de 99- o conduziu. O branco é a cor da "passagem" nos rituais de iniciação, simboliza as mudanças da existência, a morte e o renascimento.
Era Roberto renascendo "como Fênix", um radialista de São Paulo comparou, comentando a volta do cantor aos palcos depois de um ano de recolhimento. Na mitologia, Fênix é uma ave fabulosa que durava muitos séculos e que, queimada, renascia das cinzas.
O fato é que o lançamento de seu novo CD "Amor Sem Limite", dedicado à mulher, vem elevando Roberto à categoria de não-humano -um santo, um mito.
E como a exaltação excessiva do ídolo pop atinge seu ápice todo Natal -mais ainda neste, já que no anterior não houve show natalino, de novo por conta da morte do "grande amor" de sua vida, como diz a canção-, esse Roberto Carlos grisalho se transforma no próprio bom velhinho, o Papai Noel das nossas mães e avós.
O epíteto (e título desta coluna) foi uma amiga que sugeriu. "Para minha sogra, é padre Marcelo na Terra e Roberto Carlos também", ela contou, confirmando a associação da imagem do cantor com certa religiosidade pop. O bom velhinho, que insiste em manter no comprimento do cabelo o último fio a ligá-lo à juventude ou à "Jovem Guarda".
São 2 milhões de discos de Roberto Carlos chegando às lojas neste fim de ano, a notícia relata. Metade é do novo CD. O restante se divide entre os 42 títulos que o cantor lançou ao longo da carreira. Entre eles, os clássicos "Em Ritmo de Aventura" e "Detalhes".
Está claro que o eterno compositor de "Detalhes" é menos bom poeta e cantor do que uma consistente criação da mídia a atravessar os tempos. Afinal, a câmera da Globo procurava a qualquer custo uma lágrima no olhos da platéia global que assistia ao show da semana passada.
Uma lágrima, pelo amor de Deus, que rolasse dos olhos do galã amanhecido (do "pão", como se dizia dos homens bonitos na época da Jovem Guarda) Toni Ramos ou no olho de Carolina Dieckman, personagem cancerosa na ficção da novela.
Há algo de patético nesse apego ao passado, nessa insistência em se manter eterno. Nem mesmo a crítica tem coragem de dizer que Roberto Carlos é kitsch, brega.
A mim, pessoalmente, o cantor lembra um triste iê-iê-iê -a vida nos anos 60 em Recife, vida difícil, de natais vazios, quando o "bom velhinho" nunca vinha. Eu era menina pequena quando minhas tias e vizinhas, fãs incondicionais do "negro gato", nos levaram à porta do hotel Boa Viagem, o mais luxuoso da cidade na época, para ver o ídolo chegar.
Era Nordeste, sol a pino, e eu -que cresceria sem ídolos e achava minhas tias estranhas- , eu pensei que Roberto Carlos ia derreter. Mas ele resiste.


E-mail - mfelinto@uol.com.br


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