São Paulo, sábado, 26 de dezembro de 2009

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Alagados no Natal

Na festa de fim de ano no Jardim Pantanal, sem Papai Noel e sem presentes, moradores dizem querer ficar na várzea

LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

Faltavam poucos minutos para a meia-noite do Natal e o barulho na Chácara Três Meninas, um dos bairros mais castigados pelas inundações do último dia 8 no Jardim Pantanal, ficou ensurdecedor. Morteiros, bombas, rojões, bombinhas de 10, 20 e 50 estouravam em todas as ruas, de todas as casas. Por um tempo, o cheiro da pólvora e o brilho dos estalos apagaram o chulé do rio Tietê, que se arrastava escuro por detrás das casas pobres que invadiu.
"Só os vivos fazem tanto barulho assim e é isso o que queremos mostrar para nós mesmos, que estamos vivos", justificou a gráfica Carina Vieira da Silva, 23, mãe de Leonardo, 9, proprietário de um minigame de R$ 5, presente da avó. A porta da cozinha de Carina abre-se para o rio largo lambendo as paredes da casa. Antes das chuvaradas, ali havia um quintal.
Tudo na casa apodreceu depois da enchente -guarda-roupa, cama, gabinete da cozinha. O aglomerado de madeira, matéria-prima dos móveis, absorve a água como esponja. Incha.
As famílias do bairro tentaram até a véspera de Natal ver se, ao secar, as gavetas voltariam a correr, as portas, a abrir. A preparação da festa incluiu jogar fora tudo o que havia ficado imprestável. Casas esvaziaram-se e ruas encheram-se de destroços, à espera do lixeiro.
As crianças da Chácara Três Meninas não acreditam em Papai Noel. Larissa de Castro Silva, 7, tem certeza de que não existe. Não é desilusão recente. Nunca acreditou. Magrinha, a menina chacoalhava uma pulseira de plástico azul -era impossível não notar. Presente de Natal? Não, apenas um relógio quebrado, achado na enchente. Limpo pela mãe, virou pulseira.
Neste Natal, não teve presente para ela. Nem para o Gabriel Oliveira Almeida, 10, um craque tão bom no futebol que o time mirim do local, sempre que conquista um título, deixa o troféu ficar com ele. Na casa de Gabriel, a mãe Andréia Libarino Oliveira, 30, sorri com todos os dentes ao contar que recuperou três troféus de 60 centímetros de altura de dentro das águas do rio, que já os sequestrava. Foi tudo o que sobrou da casa, improvável moradia sem janelas (que custam caro), só uma porta. Difícil de secar, por falta de ventilação.
Andréia e o marido Deildo da Silva Almeida usaram a véspera do Natal para lavar a casa com água sanitária, sabão, álcool. Depois, caiaram tudo "para matar os germes". Por fim, tomaram emprestados ventiladores com vizinhos e amarraram no teto. "Para secar."
Deildo é tratorista. Já lhe pediram para usar a máquina para derrubar casas em um terreno invadido, como é a dele mesmo. O homem desceu do trator e foi embora. "Podia ser a minha casa. Não deu", justificou.
Aprende-se no bairro que melancias, uma vez cortadas com habilidade, podem ser usadas como decoração de Natal. A casa da ajudante-geral Ivani da Silva Souza, 44, quatro filhos, tem uma mesa de jantar aberta para a rua. Quem quiser, entra e come. O pano dourado pendurado na parede faz contraste com o vermelho e verde da melancia. Duas garrafas fechadas de sidra, "só para decoração", completam a produção.
Nas caixas, toca o hit "Diz pro Meu Olhar", do Bonde do Forró: "Quantas vezes em silêncio, desejei sumir daqui/ Ir buscar meus sonhos em outro caminho/ E ao abrir aquela porta pra sair eu me toquei/ Que nas ruas eu estava mais sozinho". Ivani diz que não sairá de sua casa, apesar de o imóvel estar nos planos de desapropriação dos governos estadual e municipal, que lá querem construir um parque, o Várzeas do Tietê, vazio de gente. "A gente só deixa a nossa casa se for para ir para outra casa."
Em todo o Jardim Pantanal, já se contam às dezenas as famílias que concordaram em sair da margem do rio -suas casas foram demolidas. Mas ali, na Chácara Três Meninas, o pessoal não parece disposto.
Os vizinhos começaram a se unir quando souberam que estavam dentro do perímetro do parque. Os laços se apertaram mais na inundação. A casa dos evangélicos Solange Assunção Brito, 29, e Almir Rogério, 30, pais de Melissa, 8, encheu exatamente no dia do aniversário de casamento dos dois. A primeira providência foi deitar a geladeira na mesa da sala e por cima colocar a tevê de 29 polegadas. Salvaram-se ambos.
O casal mudou-se para o pavimento superior, esperando a água baixar. Para trabalhar, Almir saía pelo telhado e por cima das casas dos vizinhos. Como um gato, ia até poder descer para a rua. Solange recebia de uma vizinha a comida pronta para comer. A marmita viajava de uma casa a outra na extremidade de um cabo de vassoura.
Cesta básica e panetone, a família recebeu de Cristóvão de Oliveira, 47, católico praticante, que se tornou a principal liderança comunitária do lugar. Já com a casa arrumada, agora é a vez de o casal evangélico oferecer ajuda a vizinhos cuja casa continua alagada. "Para nós, isso é o Natal", diz Solange.


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