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Alagados no Natal
Na festa de fim de ano no Jardim Pantanal, sem Papai Noel e sem presentes, moradores dizem querer ficar na várzea
LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL
Faltavam poucos minutos
para a meia-noite do Natal e o
barulho na Chácara Três Meninas, um dos bairros mais castigados pelas inundações do último dia 8 no Jardim Pantanal,
ficou ensurdecedor. Morteiros,
bombas, rojões, bombinhas de
10, 20 e 50 estouravam em todas as ruas, de todas as casas.
Por um tempo, o cheiro da pólvora e o brilho dos estalos apagaram o chulé do rio Tietê, que
se arrastava escuro por detrás
das casas pobres que invadiu.
"Só os vivos fazem tanto barulho assim e é isso o que queremos mostrar para nós mesmos, que estamos vivos", justificou a gráfica Carina Vieira da
Silva, 23, mãe de Leonardo, 9,
proprietário de um minigame
de R$ 5, presente da avó. A porta da cozinha de Carina abre-se
para o rio largo lambendo as
paredes da casa. Antes das chuvaradas, ali havia um quintal.
Tudo na casa apodreceu depois da enchente -guarda-roupa, cama, gabinete da cozinha.
O aglomerado de madeira, matéria-prima dos móveis, absorve a água como esponja. Incha.
As famílias do bairro tentaram até a véspera de Natal ver
se, ao secar, as gavetas voltariam a correr, as portas, a abrir.
A preparação da festa incluiu
jogar fora tudo o que havia ficado imprestável. Casas esvaziaram-se e ruas encheram-se de
destroços, à espera do lixeiro.
As crianças da Chácara Três
Meninas não acreditam em Papai Noel. Larissa de Castro Silva, 7, tem certeza de que não
existe. Não é desilusão recente.
Nunca acreditou. Magrinha, a
menina chacoalhava uma pulseira de plástico azul -era impossível não notar. Presente de
Natal? Não, apenas um relógio
quebrado, achado na enchente.
Limpo pela mãe, virou pulseira.
Neste Natal, não teve presente para ela. Nem para o Gabriel
Oliveira Almeida, 10, um craque tão bom no futebol que o time mirim do local, sempre que
conquista um título, deixa o
troféu ficar com ele. Na casa de
Gabriel, a mãe Andréia Libarino Oliveira, 30, sorri com todos
os dentes ao contar que recuperou três troféus de 60 centímetros de altura de dentro das
águas do rio, que já os sequestrava. Foi tudo o que sobrou da
casa, improvável moradia sem
janelas (que custam caro), só
uma porta. Difícil de secar, por
falta de ventilação.
Andréia e o marido Deildo da
Silva Almeida usaram a véspera
do Natal para lavar a casa com
água sanitária, sabão, álcool.
Depois, caiaram tudo "para
matar os germes". Por fim, tomaram emprestados ventiladores com vizinhos e amarraram no teto. "Para secar."
Deildo é tratorista. Já lhe pediram para usar a máquina para
derrubar casas em um terreno
invadido, como é a dele mesmo.
O homem desceu do trator e foi
embora. "Podia ser a minha casa. Não deu", justificou.
Aprende-se no bairro que
melancias, uma vez cortadas
com habilidade, podem ser usadas como decoração de Natal. A
casa da ajudante-geral Ivani da
Silva Souza, 44, quatro filhos,
tem uma mesa de jantar aberta
para a rua. Quem quiser, entra e
come. O pano dourado pendurado na parede faz contraste
com o vermelho e verde da melancia. Duas garrafas fechadas
de sidra, "só para decoração",
completam a produção.
Nas caixas, toca o hit "Diz pro
Meu Olhar", do Bonde do Forró: "Quantas vezes em silêncio,
desejei sumir daqui/ Ir buscar
meus sonhos em outro caminho/ E ao abrir aquela porta
pra sair eu me toquei/ Que nas
ruas eu estava mais sozinho".
Ivani diz que não sairá de sua
casa, apesar de o imóvel estar
nos planos de desapropriação
dos governos estadual e municipal, que lá querem construir
um parque, o Várzeas do Tietê,
vazio de gente. "A gente só deixa a nossa casa se for para ir para outra casa."
Em todo o Jardim Pantanal,
já se contam às dezenas as famílias que concordaram em
sair da margem do rio -suas
casas foram demolidas. Mas ali,
na Chácara Três Meninas, o
pessoal não parece disposto.
Os vizinhos começaram a se
unir quando souberam que estavam dentro do perímetro do
parque. Os laços se apertaram
mais na inundação. A casa dos
evangélicos Solange Assunção
Brito, 29, e Almir Rogério, 30,
pais de Melissa, 8, encheu exatamente no dia do aniversário
de casamento dos dois. A primeira providência foi deitar a
geladeira na mesa da sala e por
cima colocar a tevê de 29 polegadas. Salvaram-se ambos.
O casal mudou-se para o pavimento superior, esperando a
água baixar. Para trabalhar, Almir saía pelo telhado e por cima
das casas dos vizinhos. Como
um gato, ia até poder descer para a rua. Solange recebia de
uma vizinha a comida pronta
para comer. A marmita viajava
de uma casa a outra na extremidade de um cabo de vassoura.
Cesta básica e panetone, a família recebeu de Cristóvão de
Oliveira, 47, católico praticante, que se tornou a principal liderança comunitária do lugar.
Já com a casa arrumada, agora
é a vez de o casal evangélico oferecer ajuda a vizinhos cuja casa
continua alagada. "Para nós, isso é o Natal", diz Solange.
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