|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
DANUZA LEÃO
A memória
De algumas coisas da infância é fácil lembrar, ou melhor, impossível esquecer: das comidas, por exemplo
|
PARA QUE SERVE a memória,
afinal? Para lembrar das coisas? Mas de quantas você gostaria de lembrar e esqueceu, de
quantas gostaria de esquecer e não
consegue?
Para que serve a memória, afinal?
Para ser culta, por exemplo. Não
adianta ter feito todas as viagens,
visto todos os museus, lido todos os
livros, visto todos os filmes, se não
tiver memória. Quando falarem sobre aquela obra-prima exposta em
um pequeno museu de Amsterdã
que você por acaso conheceu, como
exibir um conhecimento a que só raras pessoas têm acesso, se não se
lembra do nome do museu, do nome
do pintor, do nome do quadro?
A memória afetiva, essa sempre fica: mas não dá para telefonar para
aquele antigo amor e perguntar "como é mesmo o nome daquele quadro que eu esqueci o nome, daquele
pintor de quem me esqueci o nome,
que vimos naquele museu de
Amsterdã?" Do que você não se esqueceu foi que naquela noite, pela
primeira vez, saíram dali bem abraçadinhos, e o resto -bem, o resto foi
o resto, e ainda bem que você não esqueceu: esses são esquecimentos
imperdoáveis -a não ser que sejam
merecidos.
Aliás, seria simples perguntar "como é mesmo o nome daquela praça
em que estávamos no dia em que você me beijou pela primeira vez?"
Lembra de Garrincha, de quem se
dizia que ele perguntava para os colegas jogadores "como é mesmo o
nome da cidade onde eu comprei
aquela gravata vermelha?" Quantas
vezes você não perguntou "em que
restaurante mesmo nós comemos
aquele maravilhoso risoto?" É, a memória é uma coisa mesmo curiosa.
De algumas coisas da infância é fácil lembrar, ou melhor, impossível
esquecer: das comidas, por exemplo.
Não que elas fossem tão fantásticas,
mas, na lembrança, o arroz de forno
dos domingos foi sempre inesquecível, mais do que qualquer iguaria comida no mais fantástico restaurante
de 20 estrelas do mundo. Lembrança puxa lembrança: quando ficava
doente, o médico vinha em casa.
Bastava ter uma febrinha e ele aparecia, geralmente antes do jantar,
quando saía do consultório.
Ele era sempre simpático, paternal, e a consulta, simples. Primeiro,
o termômetro; depois, ele puxava a
pele debaixo do olho para examinar;
em seguida, pedia uma colher, mandava abrir a boca e apertava a língua
com o cabo, para ver a garganta. Dava três pancadinhas na barriga para
ouvir o som, e mais ou menos só.
Não havia exame de nenhuma espécie, nem mesmo o de sangue. Naquele tempo, as mães só temiam
uma coisa: vermes, mais popularmente conhecidos como lombrigas.
E as meninas que comiam muito e
não engordavam tinham o maior
dos medos: ter uma solitária. É uma
lombriga, uma só, que na imaginação infantil tinha uns três metros de
comprimento e se nutria de tudo
que a criança comia -por isso ela
continuava magra.
Se o problema era na garganta, o
remédio era fazer uma embrocação.
A mãe pegava um lápis, envolvia a
ponta num algodão, atava com um
fio de linha, para fixar, molhava em
azul de metileno e pincelava a garganta -a criança aos gritos, claro.
Naquele tempo as doenças eram
doces, das tias muito velhas se dizia
que sofriam do coração -por isso
não podiam levar sustos de nenhuma espécie- e morriam em casa, à
noitinha, em silêncio, cercadas pela
família e sem a presença de nenhum
fotógrafo.
Era bem mais suave a vida -e até a
morte- no tempo em que a medicina não era tão avançada.
danuza.leao@uol.com.br
Texto Anterior: Pastor afirma que doações são espontâneas Próximo Texto: Há 50 anos Índice
|