São Paulo, domingo, 27 de abril de 2008

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Classe C busca traquejo social em aulas de etiqueta

Curso no Senac de Osasco ensina desde regras de comportamento a manejo de talheres para comer à francesa em jantar formal

"Novos ricos", antes rejeitados pela alta sociedade, agora rejeitam a "nova classe C'

VINÍCIUS QUEIROZ GALVÃO
DA REPORTAGEM LOCAL

Num auditório lotado do Senac de Osasco, uma mesa posta exibe uma taça de vinho tinto, uma flûte de champanhe, dois pratos, um fundo e um raso, duas xícaras, uma grande, outra pequena, e fileira em que se contam nove talheres.
A julgar pela curiosidade e pelo interesse da platéia, ninguém sabe ao certo manejar aquela variedade de utensílios montados no palco para comer à francesa num jantar formal.
Uma hora depois do previsto, muito além dos 15 minutos de tolerância permitidos pelo "fashionable-late", aquele pequeno atraso chique, o motivo do encontro aparece e dá a primeira lição: "pontualidade é fundamental, não existe elegância atrasada", diz o consultor de etiqueta Fábio Arruda.
Uma das cerca de cem pessoas ali presentes que querem dominar as regras de comportamento e aprender um pouco de traquejo social, a manicure Sônia Maria Isaltina, 34, nascida numa família pobre de Osasco, na Grande São Paulo, "de pais que vieram do nada", segundo diz, permeou a pobreza e chegou à classe C, a porta de entrada para a sociedade de consumo de massa.
Num salão que hoje atende mulheres de maior poder aquisitivo, ela não sabe como se portar em certas situações e se sente um tanto constrangida.
E o que os outros podem ver de inadequado no comportamento social de Isaltina, ela agora começa a perceber na massa de cerca de 20 milhões de brasileiros que migraram das camadas sociais mais baixas para a classe C só nos últimos dois anos.
"Andei de avião pela primeira vez no começo do ano. Não sabia como me comportar nem com a aeromoça nem com as dondocas. Por isso que quero fazer esse curso", afirma. "As pessoas estão começando a circular em lugares a que não tinham acesso. Acho ótimo que tenham acesso a privilégios", diz a consultora Glória Kalil.
A percepção da manicure levanta uma questão de comportamento: qual o efeito colateral da expansão da baixa renda?
Nessa troca de papéis, os novos ricos, antigas vítimas da rejeição da alta sociedade, passam agora a rejeitar essa "nova classe C", nomenclatura criada por eles próprios. Antes que alguém da platéia do Senac veja certa dose de elitismo, Fábio Arruda alerta: "etiqueta não é esnobismo, é respeitar o espaço do outro". "E em etiqueta tudo tem uma orientação lógica."
Ele explica, é assim: "Tudo que entra é pelo lado esquerdo, tudo que sai, pelo direito. Imagina a confusão que seria se todo mundo sentasse nas cadeiras como quisesse..."
O público dá gargalhadas, anota tudo em bloquinhos, Arruda gesticula pra cá, as pessoas imitam de lá, e as dicas de cerimonial seguem.
O foco agora é postura. "Gente, a mulher que pára assim [ele faz o gesto, de pernas abertas]. Ou veio a cavalo ou está assada. E no homem, então? Fica aparecendo o repolho."
No palco, Arruda ensina como lidar com a fileira de talheres nas laterais do prato (sempre de fora para dentro), como segurá-los (suavizando os movimentos, com os cotovelos junto ao corpo e os punhos elevados) e como não atacar a comida num jantar formal (forrando o estômago antes de sair de casa). Em dois tempos, todas as mulheres imitavam.
A empresária Daiany Nagao, 25, diz ter tido dificuldades no começo do namoro com o marido, Christian Nagao, executivo da Nike, por não saber se portar em algumas situações e fez um curso de etiqueta para aprender as regras de comportamento social. Nas novas rodas que passou a freqüentar, sentia a rejeição velada dos ricos e grã-finos. Agora, ela aponta os erros dos outros.
"Estava na ponte aérea e vi um passageiro brigando com a aeromoça porque queria beber. Com essas promoções, que cobram R$ 1 e dividem em inúmeras vezes, qualquer um pode voar", diz Dayane.
Desde Pigmalião, obra-prima de George Bernard Shaw, que ensinar etiqueta e boas maneiras sempre desperta interesse tanto de quem não tem traquejo social quanto de quem tem, ou acha que tem.
Quem não se lembra de Odete Roitman, a milionária de Beatriz Segall em "Vale Tudo" que ensinou à sogra -e por tabela ao Brasil- que servir copo d'água em bandeja e sobre pires "é coisa de empregada"?
Rico de novela, aliás, é assunto da palestra no Senac. "É uma tragédia, é caricato. As pessoas copiam rico de novela, meu Deus! Aquilo é cafona no último grau", diz Arruda.
Pobre? Popular? "Nem pensar. São palavras vetadas com todas as letras da propaganda", diz um alto publicitário da agência Young & Rubicam, que detém a conta das Casas Bahia.
Dinheiro compra verniz? "As pessoas aplicam, mas é feito em barco, não dura. Limites continuam existindo. Tem gente que consegue chegar lá, mas tem de fazer direito", diz Arruda.


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