São Paulo, domingo, 27 de junho de 2010

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MINHA HISTÓRIA CÍCERO OSCAR DA SILVA, 60

A situação vai melhorar

A gente foi construindo aos pouquinhos e entregando para os filhos Terminei a última casa e entreguei na maior felicidade Todo mundo morava lá perto do rio, de mim e da minha mulher Mas aí veio a água e levou tudo embora

FÁBIO GUIBU
ENVIADO ESPECIAL A UNIÃO DOS PALMARES (AL)

O meu prazer era trabalhar para não deixar os filhos desamparados. Queria que tivessem mais do que tive.
Passei 30 anos juntando dinheirinho, construindo aos poucos as casinhas para meus filhos que moram aqui em União dos Palmares.
Tive 28 filhos nesta vida, mas só dez viveram. Cinco foram embora e se ajeitaram por aí. Os outros cinco ficaram aqui na cidade. Era para eles que queria dar as casas. Para eles não pagarem aluguel e poderem ganhar o pãozinho sem tanto aperreio.
Não foi fácil fazer tudo ganhando pouco. Tinha que gastar só aquele certo e guardar o resto. Mas a gente foi construindo aos pouquinhos e entregando para os filhos.
Em maio, fiz a última casa. Achava que agora podia ficar tranquilo. Todo mundo morava lá na rua Jatobá, perto do rio Mundaú, de mim e da minha mulher, a Julia Maria [65 anos]. Mas aí veio a água e levou tudo embora.
Todas as casas caíram. Quer dizer, algumas até ficaram com uma ou outra parede, mas está tudo rachado, e acho que estão condenadas. Telhado, porta, tudo sumiu. Lá na rua não sobrou nada.
Ainda bem que quase todo mundo conseguiu correr.
Eu chorei muito depois daquilo. Só tive coragem de ir lá ontem [última quinta-feira].
No ano passado, sofri um princípio de derrame. Quase tive um negócio quando vi aquela desgraça toda [seus olhos se enchem de lágrimas]. Fico lembrando que trabalhei tanto para ter uma vida melhor mais na frente...

SANGUE FRACO
Sou alagoano. Mas fui criado pela minha avó em Quipapá, no interior de Pernambuco. Quando eu tinha 12 anos, ela morreu. Tive que me virar. Logo, me engracei com a Julia e tivemos filho. Eu com uns 12 anos, e ela com 17.
Cortei cana, limpei banana, fiz tudo quanto é coisa na roça. A mulher também trabalhava muito e ajudava a gente a se manter. As pessoas diziam que eu era muito pirralho para se juntar com mulher, mas eu não ligava.
Quando fiz 19, a família dela fez a gente se casar. Casamos no papel e fomos morar numa casa de sítio, que a minha cunhada Luiza deu.
Os filhos foram nascendo, e os meninos ficavam aperreando muito. Então, pedi para a Julia parar de trabalhar e só cuidar deles. A gente teve 28 filhos, mas eles nasciam e depois morriam.
Minha mulher tinha o sangue fraco e passava para os filhos. Eles morriam pequenos. No sítio também não tinha muita condição de comida. As crianças não tinham trato. Pode ser isso também.

ÁGUA NO PEITO
Há uns 30 anos, saímos de Pernambuco e viemos para Alagoas. Passamos por algumas cidades e viemos depois para União dos Palmares.
Aqui, continuei trabalhando de faz-tudo em uma granja [sítio], ganhando salário mínimo. De uns tempos para cá, fiquei doente, e agora estou recebendo benefício.
Mesmo assim, consegui terminar a última casa e entreguei na maior felicidade. Na sexta [dia 18], choveu forte e o rio começou a encher.
Eu olhava e achava que não ia ter problema. De repente, começou a subir rápido. Eu fiquei desconfiado e fui para a cozinha pegar um relógio. Foi o tempo de voltar e sair com a água no peito.
Não deu para salvar nada. Foi geladeira, fogão, televisão... Tinha até computador, meu filho. Perdi as coisinhas mais caras. Foi tudo rio abaixo. Nas casas dos meus filhos também não sobrou nada.
O rio já tinha enchido outras vezes, mas nunca foi assim. Enchia e baixava. A água até entrava nas casas, mas não provocava esse prejuízo todo, de ficar sem nada.

MUITA ZOADA
Depois da enchente, eu e a minha mulher viemos para o abrigo, aqui na escola [Monsenhor Clóvis Duarte de Barros, do Estado]. Só trouxemos umas roupas, um colchão, um estrado de cama.
Ficamos em um cantinho da classe com mais nove famílias. A maioria do pessoal sai cedo e volta à noite só para dormir. Às vezes, vêm comer e saem depois de novo.
Eu fico aqui, porque não posso ficar andando muito para lá e para cá. Meus filhos ficaram lá, para proteger o que sobrou dos ladrões. Está tendo muito saque lá.
Aqui na escola não gosto muito. O banheiro fica muito longe da sala. A criançada faz muita zoada à noite. Falta remédio, roupa, calçado.
Comida, até que tem bastante, mas eu só como arroz, porque tinha que ter aquela comida certa, para evitar doença, mas não tem.

TODOS IGUAIS
Outra coisa ruim é a ficar tanta gente junta no mesmo lugar. Parece uma favela. É até pior, acho, porque tem gente que faz as necessidades aí mesmo, nesse mato [aponta para o quintal da escola], e depois nem limpa. Fica aí, aquela sujeirada toda.
Briga até que não tem. As pessoas se respeitam, mas não pode ficar muito tempo assim, porque ninguém aguenta. Não é fácil ficar o tempo todo com gente desconhecida, mesmo que todo mundo aqui esteja igual.

PENSAMENTO RUIM
Eu penso no que aconteceu o tempo todo, mas a hora mais difícil é à noite.
Eu coloco no chão esse colchão que ganhei, deito aqui no meu canto e fico pensando se ainda vou ter a minha casa para morar.
Eu, velho, com essa doença, tem hora que desanimo. Mas depois penso:
Tem que tirar esse pensamento ruim da cabeça. Tem que confiar que a situação ainda vai melhorar.


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