São Paulo, domingo, 27 de junho de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÔNICA

A bolha de silêncio neste canteiro de obras que chamamos de cidade


O TRÂNSITO ERA UMA ESTÁTICA PROCISSÃO DE CARANGAS AO SOM DE UMA DODECAFONIA INFERNAL DE BUZINAS E VUVUZELAS

REINALDO MORAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

No dia em que o Brasil estreou nesta Copa de 2010 eu tinha ido ao Ibirapuera, a pé como sempre, com meu netbook na mochila, para tentar escrever minhas coisinhas num ambiente mais inspirador. Às vezes, quando estou com um prazo estrito no meu pé e sem ideias na cabeça, faço isso, de tocar para algum lugar diferente, e sempre me arrependo. Só no tempo que gasto me instalando nesse outro lugar, onde quase nunca encontro uma tomada à mão, se precisar dela, já daria para escrever metade de seja lá o que tenha para escrever. Na verdade, basta ir tomar um café na padaria da esquina que a tal da inspiração (leia-se saco para trabalhar) vem. E, se não vem, de pouco adianta subir o pico do Jaraguá de patins ou pegar o primeiro jato até um café inspirador no Quartier Latin, em Paris. (Aliás, se estivesse com grana para ir me inspirar em Paris provavelmente não teria de escrever nada de muito urgente, essa é a verdade.)
Voltando à Copa, lá estava eu naquela terça-feira aboletado junto a uma mesinha de uma das lanchonetes internas do Ibira, contemplando justamente um belo gramado sem traves e absolutamente vazio àquela hora, se descontarmos um casal de quero-queros que ciscava por ali, quando minha mulher me liga para maldizer a hora em que fora liberada da editora em que moureja diariamente para voltar pra casa, onde pretendia assistir ao jogo esparramada no sofá, dando o dia útil por findo.
O trânsito, segundo a Marta narrava em transe de angústia e desespero, era uma interminável e estática procissão de carangas fumarentas, ao som de uma dodecafonia infernal de buzinas e vuvuzelas ensandecidas. O megaengarrafamento em si eu não conseguia ver, mas a zoeira sonora, bem pouco inspiradora para os meus nobres propósitos literários, era quase palpável, mesmo eu estando a pelo menos 300 ou 400 metros da rua mais próxima, e com um escudo de vegetação a me separar dela.
Não podendo fazer nada pela consorte, e sem ânimo de assistir ao que, parece, revelou-se uma brochante vitória do time brasileiro contra os súditos do Amado Líder Kim Jong-il, fechei o computinha 5 minutos antes de começar o jogo, convencido de que não conseguiria mais construir figuras de estilo apreciáveis, e fui andar pelo amplo e arborizado espaço do melhor parque de São Paulo, sentindo que em volta a turbamulta (gostou dessa, Fabrício Corsaletti?) aos poucos se acalmava, até demais pelos critérios de um torcedor fanático, o que não era o meu caso, nem o de algumas babás apascentando criancinhas ou de um par de idosos que, como eu, também procuravam revascularizar seus malhados sistemas circulatórios. Era evidente que o time do... Soneca? Dengoso?...
não estava marcando gol nenhum no primeiro tempo, nem criando espetaculares chances de fazer isso.
Claro que não torço contra o Brasil, nem no futebol, nem no tênis de mesa, e nem mesmo nos disputados torneios de lançamento de anões, nos quais nem sei se há hoje competidores ou anões brasileiros atuando. Mas confesso que me encantou aquela repentina, majestosa, quase surreal bolha de silêncio que se instalou nesse imenso canteiro de obras que chamamos de cidade durante o jogo, e que tive a boa ventura de usufruir nos dois jogos seguintes, com ênfase neste último, contra Portugal, que chegou à perfeição, sem ninguém a berrar GOOOL!!! nas minhas oiças fatigadas.
E, ah, antes que me acusem de secador antinacionalista, torço, sim, para que o esquete canarinho volte para casa (ou seja, para a Turquia, a Espanha, a Itália, a Alemanha, os Emirados Árabes e outros refinados domicílios dos jogadores supostamente brasileiros) com aquele sorvetão folhado a ouro - de preferência após 90 minutos regulamentares, acrescidos dos 15 por 15 suplementares, de sofrido 0 a 0, só vindo a sagrar-se heroicamente hexacampeão nos pênaltis, pelo que muito agradeceríamos penhorados - eu, os quero-queros, os idosos caminhantes, as babás e as criancinhas - ao senhor... Feliz? Atchim?
Zangado?.... (Alzheimer não é, né? Não, Alzheimer deve ser o técnico da Áustria).


REINALDO MORAES é escritor


Texto Anterior: Trânsito: CET prevê pico a partir das 13h30 amanhã em razão de jogo do Brasil
Próximo Texto: Goleiro do Fla vira alvo da polícia
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.