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URBANIDADE
Memória de vinil
GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA
Desde que, há cinco
anos, chegou de Campinas, onde tinha uma vida pacata -quase todos os dias almoçava em casa-, Fábio Nascimento
foi assaltado cinco vezes em São
Paulo, três das quais nos últimos
seis meses. "Um assalto por
ano", diz. Apesar do estresse
paulistano, ele não sente vontade de ir embora, especialmente
por causa do que lhe vai acontecer nesta noite de quarta-feira.
Na adolescência, Fábio começou a colecionar discos de música erudita. "Sonhava em ser violinista." Ele já contava com mil
exemplares, todos de vinil, mas
resolveu desfazer-se de tudo para, aos poucos, ir comprando
versões gravadas na limpidez de
um CD. Preservou apenas um
disco de vinil, transformado em
relíquia: um concerto que os pianistas Arthur Moreira Lima e
João Carlos Martins fizeram no
Carnegie Hall, em Nova York,
alternando composições de Bach
e de Chopin.
"Gostava tanto daquele concerto que tive medo de que, por
acaso, ninguém o regravasse.
Não quis me arriscar."
Fábio ia substituindo, semana
após semana, seus antigos discos
por CDs. A única peça que destoava nas estantes era aquele
disco de vinil. "Ouvia-o sempre
com reverência."
Fábio tornou-se violinista e entrou na Orquestra Sinfônica de
Campinas. Mudou-se para São
Paulo em 1999, sem saber que, a
partir daquele ano, João Carlos
Martins nunca mais seria capaz
de repetir a performance do Carnegie Hall: um tumor tirou-lhe o
movimento das mãos.
Para João Carlos Martins,
mundialmente reconhecido como um dos melhores intérpretes
de Bach, tocar piano ia se transformando num passado tão distante como um disco de vinil.
Depois de perder a mão direita,
em 1999, tentou tocar apenas
com a esquerda, que funcionou
até 2002. Como as mãos ainda
eram capazes de segurar a baqueta, resolveu então aprender
regência. "Foi o que me sobrou
para não ser abandonado pela
música e, assim, minha vida não
perder o sentido."
Desses estudos de regência nasceu a idéia de ter sua própria orquestra. A idéia saiu da partitura, e a orquestra estréia hoje à
noite, na Sala São Paulo, com a
bilheteria esgotada. Sentado entre os violinistas, estará Fábio
Nascimento, com sua memória
do vinil. O concerto vai ser gravado, o que significa a certeza de
mais um CD em suas estantes.
Mais uma relíquia pessoal -afinal, desta vez, em sua coleção estará compartilhando o palco
com João Carlos Martins.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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