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ENTREVISTA
MARÍLIA ETIENNE ARREGUY
"Consciência de Lindemberg foi 'sombreada pela paixão'"
Doutora em psicopatologia critica ação da polícia e da mídiano seqüestro de Santo André
Pivô do crime que chocou o país na semana
passada, o auxiliar de produção Lindemberg Alves Fernandes, 22, estava com a
consciência "sombreada pela paixão" e precisava de negociadores habilidosos que o trouxessem
de volta à realidade. A avaliação é de Marília Etienne
Arreguy, doutora em psicanálise e psicopatologia pela
Universidade de Paris Diderot (Paris 7) e que se dedica à pesquisa de temas como ciúme, paixão, amor e
agressão entre casais. Em entrevista à Folha, ela criticou a atuação da polícia e da mídia no seqüestro de
Santo André e alertou: atitudes como a do rapaz podem ocorrer com qualquer pessoa que viva uma relação passional exacerbada.
(DENISE MENCHEN, DA SUCURSAL DO RIO)
FOLHA - Qual o papel do ciúme no
caso do seqüestro de Santo André?
MARÍLIA ETIENNE ARREGUY - O ciúme, neste caso, tomou uma dimensão tão grande que fez com
que o próprio eu, a própria
consciência do Lindemberg ficasse completamente alterada.
Cresceu a ponto de transtornar
o raciocínio mental dele. Então,
as motivações dele são motivações arcaicas, motivações inconscientes, em que a escolha é
uma escolha duvidosa.
O ciúme chega a uma via delirante. O sujeito começa a dar
uma proporção muito grande a
fatos que não seriam tão grandes assim, causando uma alteração de seu próprio eu.
FOLHA - Os amigos dizem que Lindemberg era um rapaz sossegado.
Como explicar sua mudança de
atitude?
ARREGUY - Todo mundo sente
ciúme, do mesmo jeito que sente raiva, tristeza, alegria. E
qualquer pessoa está sujeita a
que esse ciúme tome uma proporção agigantada, dependendo da forma como ela vive a relação amorosa.
O ciúme pode ser o fermento
de uma reação explosiva. A cultura, a própria história do sujeito e a situação em si, o espaço e
o tempo em que ocorre a vivência passional influenciam.
FOLHA - Qual o papel da cultura
nesse processo?
ARREGUY - Nossa cultura ainda
é machista, conservadora e patriarcal, mas convive com uma
liberalidade sexual muito grande, para a qual muita gente ainda não está preparada. Hoje
tem essa história de que a fila
anda, de que ninguém é de ninguém, mas, quando se trata de
paixão e de amor, o âmago das
pessoas é atingido. Então acredito que exista uma responsabilidade social aí também. Os
jovens precisam ser instruídos
sobre a delicadeza do coração,
da alma e da vida humana.
FOLHA - Que características contribuem para que a pessoa tenha uma
reação como a de Lindemberg?
ARREGUY - Isso tem a ver com a
forma como as relações da pessoa se estruturaram desde pequena. Mas não se pode afirmar
categoricamente que Lindemberg tinha o "germe" da passionalidade violenta ou o "germe
do crime" em si mesmo. Do
mesmo jeito que alguém pode
pegar [o vírus] HIV e desenvolver a doença [Aids], outros são
mais resistentes e ficam com o
vírus incubado. Então as pessoas têm que ter resistência a
esses sofrimentos da vida.
Dependendo dos encontros
que a pessoa faz, dependendo
da forma como ela vive esses
encontros, a coisa toma um rumo ou outro. De alguma maneira, o Lindemberg fez uma seqüência de más escolhas. Ele
estava teleguiado pela paixão.
A palavra paixão vem de pathos, que também deu origem a
patologia. Então, se a pessoa vive uma relação passional em
que o eu dela fica totalmente
colado no eu do outro, tudo pode acontecer. A mensagem importante desse caso é que pode
acontecer com qualquer pessoa
que viva uma relação passional
exacerbada.
FOLHA - É possível falar em premeditação do crime?
ARREGUY - Nesses casos de crime passional, é difícil falar em
premeditação. [O que existe] É
uma dúvida muito grande em
relação a que fazer. Para Lindemberg, sua própria existência subjetiva possivelmente dependia da existência da Eloá
[Pimentel, ex-namorada de
Lindemberg] na sua vida.
Na relação passional, existe
um espelhamento, um colamento de um com o outro. É
uma relação de tudo ou nada.
FOLHA - Como a sra. avalia a atuação da mídia durante o seqüestro?
ARREGUY - Foi muito equivocada. A exposição midiática acende o fogo das paixões, principalmente das paixões narcísicas.
Na nossa cultura, a pessoa só é
boa se tem sucesso, se aparece
na televisão, na mídia. Isso mexe com as emoções das pessoas,
ainda mais de uma pessoa que
já está perturbada.
Analogamente, podemos
comparar Lindemberg a um
animal acuado. Todo animal, se
tem a chance de fugir, foge.
Mas, se está acuado, exposto e
em risco, ele ataca. Lindemberg
possivelmente foi ficando cada
vez mais acuado com a dimensão que a ação dele foi tomando. Talvez ele tenha percebido
que não tinha saída.
Eu acho que a sociedade precisa ser muito bem informada
sobre esses casos, mas o problema é o sensacionalismo que é
gerado em torno disso e quando a atividade dos jornalistas
interfere negativamente no
trabalho de negociação e investigação policial.
FOLHA - Lindemberg não parecia
ter nenhum propósito objetivo com
o seqüestro. Como lidar com um seqüestrador desse tipo?
ARREGUY - O que estava em jogo para ele era a própria sobrevivência subjetiva dele. Esse eu
dele era um eu apaixonado, um
eu sombreado pela paixão, o
que fazia com que nem ele mesmo soubesse o que fazer. Ele
precisava de pessoas de referência que pudessem chamá-lo
à realidade. Para isso, precisava
de pessoas muito hábeis.
Claro que [essa pessoa apta a
negociar] não seria a Nayara
[Silva, amiga de Eloá], uma menina envolvida passionalmente
com a amiga, tanto que para
protegê-la colocou sua própria
vida em risco. Ela era quem tinha um pouco mais de estrutura ali dentro, mas era preciso
alguém com mais maturidade,
estrutura e preparo profissional para mediar essa situação.
FOLHA - E a polícia? Também não
estava preparada?
ARREGUY - Acredito que não.
Seria necessário ter o trabalho
de uma equipe multiprofissional, com psiquiatras, psicanalistas e psicólogos para trabalhar em conjunto com os policiais e os promotores.
Também foi um erro ter permitido que a Nayara voltasse ao
apartamento. Porque a entrada
de uma terceira pessoa numa
relação passional tanto pode
ter um papel regulatório como
um efeito contrário, de provocar mais ciúme, de provocar a
ameaça de perda no sujeito.
Precisava de alguém com
mais maturidade, estrutura e
preparo profissional para mediar essa situação, para entrar
como um terceiro sujeito que
pudesse trazer a realidade, a ordem e a lei de uma maneira
confortadora para esse casal
que estava em guerra.
FOLHA - Casos como esse costumam ser antecedidos por outros
episódios de violência?
ARREGUY - Sim. Diversos casos
de assassinatos passionais têm
um histórico de agressão, violência e uma relação conturbada. São sinais que vão surgindo
e que as pessoas normalmente
ignoram para alimentar seu
próprio narcisismo, para manter alguém apaixonado por si.
FOLHA - Quais são os sinais de que
o ciúme está saindo de controle?
ARREGUY - Na constituição do
par passional, geralmente existe o indutor de paixão, uma
pessoa que faz questão de que o
outro esteja sempre apaixonado por ela e usa isso para um
prazer próprio. Existe um ciclo
de querelas, de violência e, se
um tenta dominar, subjugar o
outro, o outro também assume
esse papel. Nessa relação de cão
e gato, a tendência é uma hora
degringolar, quiçá explodir.
FOLHA - Do ponto de vista criminal,
o ciúme pode ser considerado um
atenuante? Ou, pelo contrário, torna-se um agravante do crime?
ARREGUY - Vai depender da interpretação dos jurados. O ciúme já foi alegado como motivo
fútil ou torpe, podendo representar um qualificador do crime, mas também pode ser considerado um elemento da violenta emoção e entrar como um
fator atenuante de pena.
O ciúme, para quem não o
sente, é fútil. Para quem está vivendo na pele, ele pode se tornar uma questão de vida ou
morte. Acho que não dá para dizer que seja fútil, principalmente numa cultura que valoriza demais a fidelidade, a família, a visibilidade da pessoa e a
idéia de sucesso em todas as esferas da vida. Mas isso de maneira nenhuma pode isentar o
sujeito de responsabilidade pelo crime. Esses sujeitos passionais estão no limite entre o normal e o patológico, então não dá
para querer tratar taxativamente como "louco doente" ou
"psicopata perverso".
É preciso analisar cautelosamente o caso, assistir psicologicamente as famílias envolvidas
e prestar contas à sociedade das
soluções propostas. É importante dizer que a sociedade já
não tolera mais a impunidade
em crimes passionais.
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