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depoimento
"Voltamos aos tempos primitivos"
MANOEL FERNANDES NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Sem chuva ininterrupta
desde terça, a tensão passou. A quantidade de água
no sábado e domingo foi
algo que não tive referência mesmo após eu ter morado durante mais de 20
anos na cidade de São Paulo, de ruas alagadas e congestionamento nas marginais a cada chuvinha.
Aqui, diferentemente, a
enchente não ficou encaixotada eletronicamente
pelas notícias da TV, algo
distante. Ela estava na
porta de todos. Na rua
transformada em rio caudaloso, nas crateras abertas nas avenidas, na terra
que rolou de montes e
morros.
Blumenau é um vale. Difícil a rua que não tenha
um morro a menos de 200
metros. Foi esta a situação
mais grave; a terra que
desceu, jogando casas sobre outras casas. Uma
amiga me ligou na noite de
sábado. Mora em sobrado
bom. Em um bairro alto.
Foi categórica: "Entra
água pelas tomadas, parece cano quebrado". Deixou
rapidamente a casa, que
resistiu bravamente. Outras não tiveram tanta sorte.
Na mesma noite, um estrondo cortou a energia
das ruas de trás daquela
em que moro. Vizinhos na
calçada. Na manhã, a constatação de que mais um
morro viera abaixo. Algo
tão perto. Tão real daquilo
que para nós são notícias
de jornal.
Agora, a tristeza toma
conta dos moradores. A
água baixou. Difícil não ficar sensibilizado, tocado,
por mais racional que se
possa ser. Blumenau é um
corpo inerte, com suas vísceras expostas. O cenário é
de fim de mundo cinematográfico, algo que lembra
o seriado Jericho [série sobre moradores do Kansas
depois de um ataque nuclear], que recentemente
passou na TV a cabo.
No entanto, nada aqui é
fantasia. A dor é real e não
baixou com as águas. Casas, antes livres de enchente, agora à mercê de
deslizamentos. O solo derrete pelo volume das
águas. O olhar das pessoas
ainda procura soluções
para dúvidas permanentes
e alternativas urgentes. O
telefone não pára de tocar
com pedidos de auxilio.
Nos sentimos impotentes.
Cem por cento da cidade
está sem abastecimento
de água desde sábado. Voltamos aos tempos primitivos. Percebemos como
desperdiçamos água em
um banho de chuveiro de
cinco minutos em situações normais. Hoje ficamos felizes com meio balde, e temos certeza de que
nunca estivemos tão revigorados.
Para os homens e chefes
da casa, como eu, soluções
para tempos de sobrevivência: defeco e enterro os
rejeitos no quintal, para
economizar. Mas isto é o
de menos. Muitos perderam tudo. A casa do pai de
uma grande amiga foi soterrada por uma montanha. Era um local rural,
paradisíaco, com direito a
cachoeira ao lado da casa.
Será quase impossível encontrar os corpos.
Quem está vivo, agradece a Deus. Procuro manter
o ânimo, principalmente
por causa das minhas filhas, apesar de uma vontade sufocada de chorar. A
certeza: depois do choque,
a cidade vai reagir. Este
novembro de 2008 também entrará para a História de Blumenau.
MANOEL FERNANDES NETO, 45, é jornalista e mora em Blumenau desde 2002.
O bairro onde vive ficou isolado, apesar
de a enxurrada não ter afetado sua casa.
Casado, tem duas filhas.
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