São Paulo, segunda-feira, 28 de março de 2005

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MOACYR SCLIAR

Felicidade não se compra. Nem mesmo pela internet

Sofá de dois lugares, seminovo: produtos como esse podem sair de sua casa e serem vendidos com a ajuda da internet.
Folha Informática, 23.mar.2005

Ele adorava o sofá de dois lugares que estava no living. A mulher odiava o sofá de dois lugares que estava no living. Ele adorava o sofá de dois lugares que estava no living porque era ali que, todas as noites, se instalava para assistir a TV até altas horas. A mulher odiava o sofá de dois lugares que estava no living porque era ali que, todas as noites, o marido se instalava para assistir a TV até altas horas. E, vendo TV, o marido não queria fazer programas, não queria passear, não queria nem conversar. Em desespero, ela ameaça vender o sofá por qualquer preço.
O marido não acreditava. Porque a mulher não tinha jeito para negociar. Não sabia falar com as pessoas, não sabia apresentar seu produto. Se dependesse de sua habilidade para a venda, o sofá de dois lugares permaneceria no living por muitos e muitos anos. De modo que ele ficou muito surpreso quando, voltando do trabalho, não encontrou o sofá. Vendi, disse a mulher, triunfante. Ele não quis acreditar, achou que fosse brincadeira. Ela explicou: graças à internet, tinha vendido a uma pessoa que nem conhecia, que enviara um portador para entregar o dinheiro e levar o sofá.
Aquilo deixou-o furioso. Queria o seu sofá de volta e exigiu da mulher o nome do comprador. Ela simplesmente se recusou a revelar esse segredo.
Brigaram e, naquela noite, ele dormiu no outro quarto do apartamento, vazio desde que a filha tinha casado. De madrugada, uma idéia lhe ocorreu. Correu a verificar os e-mails da esposa e, de fato, ali estava a mensagem enviada pela compradora, com nome, endereço, telefone.
No dia seguinte, ligou para essa mulher, disse que precisava vê-la com urgência: assunto ligado à compra do sofá. Ela relutou, mas consentiu em recebê-lo. Ele foi até a casa, num bairro afastado. E ali estava a mulher, ainda jovem, a esperá-lo. No living, diante da TV, o sofá de dois lugares.
Que ele quis comprar de volta. Ela recusou; gostara do sofá, não o venderia. Ele recorreu a todos os argumentos, sem resultado, quis até pagar o dobro da quantia que ela havia despendido. Nada, ela mostrava-se irredutível, e ele acabou desistindo.
Antes de ir embora, porém, resolveu perguntar quem sentava ao lado dela no sofá.
Ninguém, foi a resposta. Divorciada, estava sozinha havia algum tempo. Comprara um sofá de dois lugares porque tinha esperança de, um dia, arranjar um companheiro.
Ele tem ido à casa da nova proprietária do sofá. Senta-se ao lado dela para ver TV, coisa que adora. No começo, ela gostava da companhia.
Mas agora já não acha o arranjo tão bom: o homem não quer fazer programas, não quer passear, não quer nem conversar.
Ela pensa seriamente em vender o sofá. Não é muito hábil nessas coisas, mas tem certeza de que, através da internet, resolverá o problema.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas na Folha.


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