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MOACYR SCLIAR
Felicidade não se compra. Nem mesmo pela internet
Sofá de dois lugares, seminovo: produtos como esse podem sair de sua
casa e serem vendidos com a ajuda
da internet.
Folha Informática, 23.mar.2005
Ele adorava o sofá de dois
lugares que estava no living.
A mulher odiava o sofá de dois lugares que estava no living. Ele
adorava o sofá de dois lugares
que estava no living porque era
ali que, todas as noites, se instalava para assistir a TV até altas horas. A mulher odiava o sofá de
dois lugares que estava no living
porque era ali que, todas as noites, o marido se instalava para assistir a TV até altas horas. E, vendo TV, o marido não queria fazer
programas, não queria passear,
não queria nem conversar. Em
desespero, ela ameaça vender o
sofá por qualquer preço.
O marido não acreditava. Porque a mulher não tinha jeito para
negociar. Não sabia falar com as
pessoas, não sabia apresentar seu
produto. Se dependesse de sua habilidade para a venda, o sofá de
dois lugares permaneceria no living por muitos e muitos anos. De
modo que ele ficou muito surpreso quando, voltando do trabalho,
não encontrou o sofá. Vendi, disse
a mulher, triunfante. Ele não quis
acreditar, achou que fosse brincadeira. Ela explicou: graças à internet, tinha vendido a uma pessoa
que nem conhecia, que enviara
um portador para entregar o dinheiro e levar o sofá.
Aquilo deixou-o furioso. Queria
o seu sofá de volta e exigiu da mulher o nome do comprador. Ela
simplesmente se recusou a revelar
esse segredo.
Brigaram e, naquela noite, ele
dormiu no outro quarto do apartamento, vazio desde que a filha
tinha casado. De madrugada,
uma idéia lhe ocorreu. Correu a
verificar os e-mails da esposa e, de
fato, ali estava a mensagem enviada pela compradora, com nome, endereço, telefone.
No dia seguinte, ligou para essa
mulher, disse que precisava vê-la
com urgência: assunto ligado à
compra do sofá. Ela relutou, mas
consentiu em recebê-lo. Ele foi até
a casa, num bairro afastado. E ali
estava a mulher, ainda jovem, a
esperá-lo. No living, diante da
TV, o sofá de dois lugares.
Que ele quis comprar de volta.
Ela recusou; gostara do sofá, não
o venderia. Ele recorreu a todos os
argumentos, sem resultado, quis
até pagar o dobro da quantia que
ela havia despendido. Nada, ela
mostrava-se irredutível, e ele acabou desistindo.
Antes de ir embora, porém, resolveu perguntar quem sentava
ao lado dela no sofá.
Ninguém, foi a resposta. Divorciada, estava sozinha havia algum tempo. Comprara um sofá
de dois lugares porque tinha esperança de, um dia, arranjar um
companheiro.
Ele tem ido à casa da nova proprietária do sofá. Senta-se ao lado
dela para ver TV, coisa que adora. No começo, ela gostava da
companhia.
Mas agora já não acha o arranjo tão bom: o homem não quer fazer programas, não quer passear,
não quer nem conversar.
Ela pensa seriamente em vender o sofá. Não é muito hábil nessas coisas, mas tem certeza de
que, através da internet, resolverá
o problema.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de
ficção baseado em reportagens publicadas na Folha.
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