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MOACYR SCLIAR
Atrás do outdoor
O fato é que admirava os outdoors, que os considerava uma versão dos vitrais da Idade Média
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É preciso recuperar o que o outdoor escondia. Um dos tratamentos de beleza
urbana mais copiados e admirados é o de
Barcelona, na Espanha. De porto industrial decadente após quatro décadas de
franquismo, a capital da Catalunha virou
potência turística e referência de arquitetura. Para isso foi preciso tirar outdoors e recuperar fachadas históricas.
Inspiradora da Lei Cidade Limpa paulistana, a campanha "Barcelona, ponha-se
bela" iniciou a transformação da cidade.
Entrevista publicada na Folha no dia 21
de maio
DE MANEIRA geral, as pessoas
apoiaram a remoção dos outdoors da cidade. Ele, não. Ao
contrário, dizia para quem quisesse
ouvir que aquilo era uma coisa retrógrada, primitiva: outdoors têm
por objetivo estimular o consumo, e
como a produção depende do consumo, ao fim e ao cabo a prosperidade econômica e o bem-estar do país
seriam função do número de outdoors. Os amigos ouviam-no em
prudente silêncio; mas alguns, aqueles que não tinham muito tato, não
deixavam de replicar que aquela era
uma queixa pessoal: afinal de contas, ele dependia dos outdoors para
viver, já que toda sua vida trabalhara
numa firma especializada nesse gênero de publicidade.
Verdade: ele havia sido diretamente prejudicado. Mas não apenas
porque ficara sem trabalho. O fato é
que admirava os outdoors, que os
considerava uma versão dos vitrais
da Idade Média ou dos painéis de
pintores famosos.
Aos outdoors entregara-se com
paixão; e um deles particularmente
o arrebatava, em primeiro lugar porque ficava bem em frente ao prédio
onde ele, solteirão, morava sozinho;
e depois, porque ali aparecia a foto
de uma bela moça, de grandes olhos
azuis e boca bem desenhada. Chegara a perguntar ao fotógrafo quem era
a jovem; mas recebera uma resposta
evasiva e, orgulhoso como era, optara por não insistir.
O outdoor foi removido, como
tantos outros, e aí apareceu o que
havia ali atrás: um pequeno, e feio,
prédio de apartamentos, coberto de
inscrições deixadas pelos pichadores. Isso era o que veria daí em diante. Mil vezes o outdoor, mas este
agora pertencia ao passado. Resolveu mudar-se dali, quem sabe ir até
para outra cidade.
Mas aí o destino interveio, e de
forma absolutamente inesperada. A
mudança (para uma cidade vizinha)
já estava marcada para uma segunda-feira. No domingo de manhã chegou à janela para, pela última vez,
olhar o bairro que agora era para ele
motivo de desgosto.
E aí viu. Na janela do prédio em
frente estava uma moça. Ao vê-la,
seu coração bateu mais forte. Não
pode ser, exclamou, incrédulo, e foi
correndo buscar o binóculo, pelo
qual mirou a jovem de novo. Era ela,
sim. A moça do outdoor. Num impulso, atravessou a rua correndo e
foi bater à porta do apartamento.
Estão namorando firme, ainda
que cada um conserve o seu apartamento: ela gosta da vista que tem do
seu. E, modelo fotográfico, ela é
quem garante o ganha-pão, enquanto ele não arranja outro emprego.
Uma situação que poderia ser humilhante, mas que agora em absoluto o
incomoda, porque está apaixonado
e a paixão é tudo. Nem lembra mais
os outdoors. Aliás, está convencido
de que atrás dos outdoors é que está
a verdade da vida.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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