São Paulo, segunda-feira, 28 de maio de 2007

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MOACYR SCLIAR

Atrás do outdoor


O fato é que admirava os outdoors, que os considerava uma versão dos vitrais da Idade Média

 É preciso recuperar o que o outdoor escondia. Um dos tratamentos de beleza urbana mais copiados e admirados é o de Barcelona, na Espanha. De porto industrial decadente após quatro décadas de franquismo, a capital da Catalunha virou potência turística e referência de arquitetura. Para isso foi preciso tirar outdoors e recuperar fachadas históricas. Inspiradora da Lei Cidade Limpa paulistana, a campanha "Barcelona, ponha-se bela" iniciou a transformação da cidade.
Entrevista publicada na Folha no dia 21 de maio

DE MANEIRA geral, as pessoas apoiaram a remoção dos outdoors da cidade. Ele, não. Ao contrário, dizia para quem quisesse ouvir que aquilo era uma coisa retrógrada, primitiva: outdoors têm por objetivo estimular o consumo, e como a produção depende do consumo, ao fim e ao cabo a prosperidade econômica e o bem-estar do país seriam função do número de outdoors. Os amigos ouviam-no em prudente silêncio; mas alguns, aqueles que não tinham muito tato, não deixavam de replicar que aquela era uma queixa pessoal: afinal de contas, ele dependia dos outdoors para viver, já que toda sua vida trabalhara numa firma especializada nesse gênero de publicidade.
Verdade: ele havia sido diretamente prejudicado. Mas não apenas porque ficara sem trabalho. O fato é que admirava os outdoors, que os considerava uma versão dos vitrais da Idade Média ou dos painéis de pintores famosos.
Aos outdoors entregara-se com paixão; e um deles particularmente o arrebatava, em primeiro lugar porque ficava bem em frente ao prédio onde ele, solteirão, morava sozinho; e depois, porque ali aparecia a foto de uma bela moça, de grandes olhos azuis e boca bem desenhada. Chegara a perguntar ao fotógrafo quem era a jovem; mas recebera uma resposta evasiva e, orgulhoso como era, optara por não insistir.
O outdoor foi removido, como tantos outros, e aí apareceu o que havia ali atrás: um pequeno, e feio, prédio de apartamentos, coberto de inscrições deixadas pelos pichadores. Isso era o que veria daí em diante. Mil vezes o outdoor, mas este agora pertencia ao passado. Resolveu mudar-se dali, quem sabe ir até para outra cidade.
Mas aí o destino interveio, e de forma absolutamente inesperada. A mudança (para uma cidade vizinha) já estava marcada para uma segunda-feira. No domingo de manhã chegou à janela para, pela última vez, olhar o bairro que agora era para ele motivo de desgosto.
E aí viu. Na janela do prédio em frente estava uma moça. Ao vê-la, seu coração bateu mais forte. Não pode ser, exclamou, incrédulo, e foi correndo buscar o binóculo, pelo qual mirou a jovem de novo. Era ela, sim. A moça do outdoor. Num impulso, atravessou a rua correndo e foi bater à porta do apartamento.
Estão namorando firme, ainda que cada um conserve o seu apartamento: ela gosta da vista que tem do seu. E, modelo fotográfico, ela é quem garante o ganha-pão, enquanto ele não arranja outro emprego.
Uma situação que poderia ser humilhante, mas que agora em absoluto o incomoda, porque está apaixonado e a paixão é tudo. Nem lembra mais os outdoors. Aliás, está convencido de que atrás dos outdoors é que está a verdade da vida.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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