São Paulo, terça-feira, 28 de setembro de 2004

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GUERRA SEM TRINCHEIRA

Seqüelas físicas e psíquicas são mais freqüentes em quem tem de reconhecer corpo de pessoa assassinada

Violência traumatiza parentes e amigos de vítimas

MARIO HUGO MONKEN
DA SUCURSAL DO RIO

A violência produz vítimas ocultas dos levantamentos estatísticos da criminalidade. Elas têm seqüelas físicas e psíquicas em razão da morte de familiares ou amigos, apesar de não terem envolvimento direto com o crime que nela resultou. São vítimas indiretas da violência que atingiu alguém por quem tinham afeto.
É o que revela o estudo "Vítimas Ocultas da Violência no Município do Rio de Janeiro", do professor Gláucio Soares, da Universidade Cândido Mendes. Ao todo, foram ouvidas em 2003 e 2004 690 pessoas que perderam parentes ou amigos por morte violenta.
Segundo o estudo, por exemplo, as pessoas que fizeram reconhecimento do corpo de um familiar ou amigo morto violentamente têm o dobro de chances do que aqueles que não viram de ter reações físicas pesadas -como diarréias, enjôo, vômitos, dores de cabeça, entre outras- quando lembram da morte, mesmo que tenha ocorrido há vários anos.
Segundo Gláucio Soares, quem faz o reconhecimento de um familiar ou amigo costuma ter visões noturnas do corpo mesmo sem querer. Dados do levantamento indicam que 40% das pessoas que fizeram o reconhecimento apresentam esse sintoma, contra apenas 17% dos que não viram ou viram, mas não fizeram o reconhecimento oficial. "Esse é um processo extremamente penoso e deixa marcas", afirma.
Segundo Soares, a pesquisa constatou que "vítimas ocultas" da violência desenvolvem uma doença chamada Desordem de Estresse Pós-Trauma, que ocorre com maior freqüência entre as pessoas que reconhecem o corpo.
A DEPT foi estudada nos Estados Unidos entre vítimas de guerras e catástrofes provocadas por fenômenos naturais. "Aqui no Brasil, a catástrofe é humana", disse o pesquisador.
O estudo recolheu o depoimento de uma mulher que reconheceu o corpo do marido morto há 30 anos, mas que disse que até hoje tem visões do cadáver.
Para Gláucio Soares, esse trauma do reconhecimento ajuda a desmistificar a idéia de que ver o corpo ajuda "a fechar" o evento e abre espaço para o reinício da vida. Segundo ele, esse tipo de raciocínio pode ser válido para parentes de desaparecidos de ditaduras militares ou de vítimas dos atentados, como o de 11 de setembro de 2001 nos EUA. Mas é diferente no caso da violência urbana.

Assassinos
Soares disse que um aspecto que faz aumentar o trauma é que muitos são obrigados a conviver com os assassinos porque vivem nos mesmos ambientes, principalmente nas áreas carentes.
"Os assassinos moram na favela, nem sequer se preocupam em se esconder. Continuam a fazer o que faziam antes. E os parentes e os amigos dos mortos dão de cara com eles com certa freqüência."
O pesquisador observou ainda que os parentes ou amigos de vítimas da violência urbana tendem a viver um trauma maior do que aqueles que perderam familiares em acidentes ou suicídios.
Segundo ele, isso pode ser constatado pelos distúrbios do sono: 41% dos parentes ou amigos de vítimas de homicídio levam mais de meia hora para dormir, contra 34% dos parentes ou amigos de suicidas e 30% dos parentes dos mortos em acidentes.
A pesquisa mostra que, quanto maior o grau de aproximação com a pessoa morta, maior será o trauma. As mulheres sentem mais do que os homens, e os religiosos trabalham melhor a perda.
De acordo com o estudo, há uma tendência de as vítimas ocultas se isolarem e não procurarem ajuda. De 10 entrevistados, 8 não recorreram aos seus vizinhos depois da tragédia. Na média, apenas 1 em cada 25 buscou tratamento psicológico.
Quando perdem uma pessoa próxima tragicamente, a tendência dos familiares e amigos é ficar mais descrentes. Dos entrevistados, 83% disseram que não confiam mais em outras pessoas.


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