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GUERRA SEM TRINCHEIRA
Seqüelas físicas e psíquicas são mais freqüentes em quem tem de reconhecer corpo de pessoa assassinada
Violência traumatiza parentes e amigos de vítimas
MARIO HUGO MONKEN
DA SUCURSAL DO RIO
A violência produz vítimas
ocultas dos levantamentos estatísticos da criminalidade. Elas têm
seqüelas físicas e psíquicas em razão da morte de familiares ou
amigos, apesar de não terem envolvimento direto com o crime
que nela resultou. São vítimas indiretas da violência que atingiu alguém por quem tinham afeto.
É o que revela o estudo "Vítimas
Ocultas da Violência no Município do Rio de Janeiro", do professor Gláucio Soares, da Universidade Cândido Mendes. Ao todo,
foram ouvidas em 2003 e 2004 690
pessoas que perderam parentes
ou amigos por morte violenta.
Segundo o estudo, por exemplo,
as pessoas que fizeram reconhecimento do corpo de um familiar
ou amigo morto violentamente
têm o dobro de chances do que
aqueles que não viram de ter reações físicas pesadas -como diarréias, enjôo, vômitos, dores de cabeça, entre outras- quando lembram da morte, mesmo que tenha
ocorrido há vários anos.
Segundo Gláucio Soares, quem
faz o reconhecimento de um familiar ou amigo costuma ter visões noturnas do corpo mesmo
sem querer. Dados do levantamento indicam que 40% das pessoas que fizeram o reconhecimento apresentam esse sintoma,
contra apenas 17% dos que não
viram ou viram, mas não fizeram
o reconhecimento oficial. "Esse é
um processo extremamente penoso e deixa marcas", afirma.
Segundo Soares, a pesquisa
constatou que "vítimas ocultas"
da violência desenvolvem uma
doença chamada Desordem de
Estresse Pós-Trauma, que ocorre
com maior freqüência entre as
pessoas que reconhecem o corpo.
A DEPT foi estudada nos Estados Unidos entre vítimas de guerras e catástrofes provocadas por
fenômenos naturais. "Aqui no
Brasil, a catástrofe é humana",
disse o pesquisador.
O estudo recolheu o depoimento de uma mulher que reconheceu o corpo do marido morto há
30 anos, mas que disse que até hoje tem visões do cadáver.
Para Gláucio Soares, esse trauma do reconhecimento ajuda a
desmistificar a idéia de que ver o
corpo ajuda "a fechar" o evento e
abre espaço para o reinício da vida. Segundo ele, esse tipo de raciocínio pode ser válido para parentes de desaparecidos de ditaduras militares ou de vítimas dos
atentados, como o de 11 de setembro de 2001 nos EUA. Mas é diferente no caso da violência urbana.
Assassinos
Soares disse que um aspecto que
faz aumentar o trauma é que muitos são obrigados a conviver com
os assassinos porque vivem nos
mesmos ambientes, principalmente nas áreas carentes.
"Os assassinos moram na favela, nem sequer se preocupam em
se esconder. Continuam a fazer o
que faziam antes. E os parentes e
os amigos dos mortos dão de cara
com eles com certa freqüência."
O pesquisador observou ainda
que os parentes ou amigos de vítimas da violência urbana tendem a
viver um trauma maior do que
aqueles que perderam familiares
em acidentes ou suicídios.
Segundo ele, isso pode ser constatado pelos distúrbios do sono:
41% dos parentes ou amigos de
vítimas de homicídio levam mais
de meia hora para dormir, contra
34% dos parentes ou amigos de
suicidas e 30% dos parentes dos
mortos em acidentes.
A pesquisa mostra que, quanto
maior o grau de aproximação
com a pessoa morta, maior será o
trauma. As mulheres sentem mais
do que os homens, e os religiosos
trabalham melhor a perda.
De acordo com o estudo, há
uma tendência de as vítimas ocultas se isolarem e não procurarem
ajuda. De 10 entrevistados, 8 não
recorreram aos seus vizinhos depois da tragédia. Na média, apenas 1 em cada 25 buscou tratamento psicológico.
Quando perdem uma pessoa
próxima tragicamente, a tendência dos familiares e amigos é ficar
mais descrentes. Dos entrevistados, 83% disseram que não confiam mais em outras pessoas.
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