São Paulo, quarta-feira, 28 de outubro de 2009

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Escola amarra janela para impedir que alunos vejam "noias"

Fundado em 1885 e tombado pelo patrimônio histórico, o colégio salesiano funciona em região que abriga centenas de viciados em crack

O Liceu Coração de Jesus, na região central, decidiu encerrar as atividades do ensino médio matutino por falta de estudantes

Apu Gomes/Folha Imagem
Da janela do Liceu Coração de Jesus, no centro de São Paulo, é possível ver usuários consumindo crack pela manhã, enquanto mulher leva a criança para a escola

JAMES CIMINO
DA REPORTAGEM LOCAL

Fundado em 1885 por são João Dom Bosco, com o auxílio da princesa Isabel, o Liceu Coração de Jesus, onde estudaram personagens como Monteiro Lobato, Grande Otelo e Toquinho, definha em meio à cracolândia, área degradada do centro de São Paulo que abriga centenas de usuários de crack.
A presença constante dos "noias" no entorno do liceu espanta alunos novos e, há pelo menos oito anos, tem motivado transferências de estudantes. O problema é tão grave que o colégio, que ocupa uma área de 17 mil m2, tem hoje só 288 alunos -há 30 anos eram 3.000.
A partir do ano que vem, a situação vai piorar, pois o colégio encerrará as atividades do ensino médio matutino.
Em 2008, foi fechado o fundamental vespertino. Há três anos, os cursos superiores e, há oito, não existe mais aquele que foi o primeiro curso de ensino médio noturno da cidade.
O panorama da escola é desolador. A grande quadra central está quase sempre vazia. Não se ouve mais a algazarra das crianças -o lugar parece mais um retiro.
No bloco cuja vista dá para a rua Barão de Piracicaba, salas vazias e empoeiradas. Mesas e cadeiras amontoadas. Uma das lousas tem anotado o horário do remédio de alguém, provavelmente de um dos garotos que não estudam mais lá.
As janelas basculantes foram amarradas com arame pelo bedel Manuel Moran Vinayo, o Manolo, para impedir que os alunos vissem o uso da droga nas calçadas.
"Ano que vem, com sorte, terei 200 alunos. E a mensalidade nem é tão cara. Custa R$ 718 o [ensino] médio. Os alunos que temos, apesar de toda a degradação, têm relação afetiva com a escola e ficam. Mas não conseguimos alunos novos. A fonte secou. Fecho no vermelho todo mês, e quem completa a receita é a congregação [dos Salesianos]", diz o padre Benedito Spinosa, diretor da escola.
Ele conta que o ensino médio deveria ter sido fechado no ano passado. Só não acabou porque as despesas foram bancadas com a renda obtida do aluguel de um bloco para a seguradora Porto Seguro, que usou o espaço para treinar funcionários.
"O ensino médio é muito caro. Exige preparação para o Enem à tarde e, se não tiver muitas turmas, o investimento é muito alto", afirma o padre.

Negros e imigrantes
O liceu, tombado pelo patrimônio histórico, acompanhou as mudanças da cidade. No início, chamava-se Liceu de Artes, Ofícios e Comércio e atendia aos filhos dos imigrantes italianos e dos negros libertos, que estudavam gratuitamente nas oficinas de sapataria e alfaiataria. Mais tarde, serviu como internato para filhos de fazendeiros do café. Depois teve cursos universitários e técnicos.
Hoje, mesmo com todos os problemas, o padre Benedito diz que o liceu não vai fechar. "Não vamos desistir. Educar é a vida dos salesianos e já investimos muito dinheiro aqui. Tenho esperança no ensino integral, que tem aumentado a procura, pois os pais entram de carro no pátio do colégio e deixam as crianças aqui, diferentemente dos jovens do ensino médio, que costumam vir sozinhos e, por isso, acabam sendo vítimas dessa situação de não cidadania, que penetra em seu coração e planta a semente do medo e da indiferença."


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